A leitura literária como via possível para processos de simbolização e subjetivação

La lectura literaria como vía posible para procesos de simbolización y subjetivación

Literary reading as a possible way for processes of symbolization and subjectivation

Raquel Lima Silva Costa




Destaques


Precisamos ser mais leitores e mediadores de leitura junto a nossos alunos.


A prática de leitura compartilhada, em que o professor lê junto aos alunos, é uma superação do modelo conservador de ensino.


A recusa dos estudantes à prática de leitura pode envolver resistência ao novo e desconhecido.


É preciso um compromisso ético dos professores para que o trabalho de leitura seja ressignificado.


Resumo


Neste texto, de cunho teórico-ensaístico, reflito, inicialmente, acerca da dessimbolização e do arruinamento da experiência, apoiando-me, respectivamente, em Birman (2020) e Bondía (2002). Adiante, à luz de Petit (2009; 2013; 2019), penso a Literatura como via possível para simbolização e subjetivação. Recorro a bell hooks (2017), considerando como o ensino de literatura, ao levar em conta a formação subjetiva, mostra-se como prática educativa emancipatória. Permeiam minhas reflexões experiências subjetivas de leitura que reverberam no modo como, enquanto docente, penso a prática leitora. Então, concluo, vislumbrando possibilidades para a experiência da leitura literária em sala de aula.


Resumen | Abstract


Palavras-chave

Literatura. Experiência. Simbolização.


Recebido: 12.01.2023

Aceito: 31.03.2023

Publicado: 26.04.2023


Minhas reflexões introdutórias


Entendo a Literatura como fonte inesgotável de acesso ao eu, ao mundo e ao outro. O texto, na linguagem literária, no modo como dá a ver o possível de ser, concede ao leitor meios para que possa organizar melhor o que vivencia. As narrativas, de modo geral, têm esse poder, ao darem forma ao que difusamente habita o imaginário. Nesse aspecto, por meio da leitura literária, creio haver a possibilidade para que o sujeito, pela experiência leitora, consiga, ao passar por um processo de “construção de si mesmo” (Petit, 2013, p. 39), dar novos sentidos à interpretação da realidade.

A experiência de leitura, tendo em vista a natureza alteritária e dialógica da subjetividade humana, também é sempre mediada. Houve alguém que nos contou uma narrativa num primeiro momento. Houve quem nos mostrou um livro numa ocasião primeira. De essência complementar ao ato de ler, portanto, a mediação leitora. Trata-se, aliás, de algo de caráter ancestral, se entendemos que o mundo, antes mesmo da invenção da escrita, sempre se nos apresentou como uma cadeia de signos a serem lidos e interpretados (Foucault, 2007, p. 53). Alguém, contudo, sempre esteve ali, entre nós, mediando signos e sentidos. Michèle Petit (2009, p. 89), nesse aspecto, mostra-nos como a mãe, ou a pessoa cuidadora, ao dar dimensão narrativa à cacofonia da existência, promove a articulação entre linguagem e pensamento, situando o sujeito, portanto, na cultura:

[…] A todo o momento, somos bombardeados por uma sucessão fragmentada de imagens, mas igualmente de odores, de barulhos, de gritos, pedaços de conversas, impressões táteis, que as coisas e as pessoas nos deixam; e de múltiplas sensações internas. No meio dessa desordem, o espírito humano precisa selecionar alguns detalhes para reduzir a cacofonia e dar-lhes sentido.

A princípio, é no exterior que o sentido é encontrado. No começo da vida, a mãe ou a pessoa que cuida da criança interpreta, traduz o que ela sente em pequenas narrativas: “Meu bebê ouviu a mamãe chegando, ele pensou que ela vinha abraçá-lo e como ela não veio logo, ele ficou furioso e começou a chorar”. Sempre um pouco adiantada em relação ao desenvolvimento da criança, ela antecipa assim os processos de união da linguagem e do pensamento, que ainda são rudimentares (da mesma forma como as histórias que ouvimos ou os livros que lemos ecoam em nós o que até então era indizível). (Petit, 2009, p. 89)

Ao ter isso em conta, me vem à mente uma narrativa oral, que me contava meu pai, em minha infância. Um personagem que conseguia ouvir o centro da terra, antecipando a chegada de adversários, sempre ressoa em minha memória, ainda que não me recorde de toda a estória a ele referente. Lembro-me de ter sido capaz de conceder uma existência “real”, ainda que momentânea, a esse personagem, que me causava grande fascínio. É como se, pela coragem que nele eu via, eu compreendesse, já ali criança, que é preciso garra para enfrentar os desafios. De algum modo, situei a narrativa em seu contexto verossímil, aproximando-a de um real possível. Outro aspecto que até hoje ressoa em minha memória refere-se à performance da contação, pois meu pai, em seus gestos e entonações, conseguia dar à narrativa uma dimensão épica (com traços fantásticos e profundamente humanos). Assim, penso que os modos de contar, pelas articulações da voz e do corpo, sejam também elementos de carga simbólica.

Esse episódio da infância me faz também compreender a nuance formadora e transformadora que as narrativas carregam. Desvela-me a importância de alguém, como um pai e uma mãe, que, na posição de narrador, narradora, ao semear voz e sentido, amanhando palavras e sonhos, é capaz de passar adiante a experiência, aquela mesma que Walter Benjamin observou estar em declínio, suplantada pelo “monstruoso desenvolvimento da técnica.” (Benjamin, 1987, p. 115). 

Inquieta-me, no entanto, que essa dimensão da experiência leitora paire incerta, especialmente quando trazemos à discussão o universo escolar. Há cerca de quinze anos de docência, como professora de Língua Portuguesa, parece-me haver, ainda, certa recusa na escola para com a leitura, notadamente no que se refere à leitura de textos literários. Hoje, especialmente em razão de estudos acerca da leitura literária que tive a oportunidade de realizar, pergunto-me se essa recusa se dá apenas por parte dos estudantes ou se nós, professores, também não apresentaríamos postura similar. Porventura, num espaço escolar, onde tudo é sempre tão urgente (em que nunca há tempo), não estaríamos sucumbindo à ideia de leitura como prática da ordem do impossível? O que podemos fazer, enquanto docentes – e mediadores de leitura –, para que os estudantes, também nós, nos predisponhamos a “virar a página”, de modo a ressignificarmos nossas experiências leitoras?

Minhas perguntas estão situadas muito em razão do fato de que se faz cada vez mais perceptível, no mundo contemporâneo, um desgaste dos processos de simbolização e subjetivação, fenômeno capaz de gerar formas múltiplas de aturdimento dos sentidos e interpretações, em que os sujeitos têm afetadas as capacidades de metaforizar e julgar. Ações cada vez mais imediatistas, não planejadas, sem tempo de ponderação, nos dão vistas de como o sujeito pós-moderno prende-se a um mundo e a um tempo em que tudo é feito às pressas, impedindo-se tanto de experienciar o presente em sua plenitude como de projetar o futuro com tranquilidade.

Então, nesse contexto de rarefação dos sentidos e interpretações, creio tornar-se oportuno preservarmos ou resgatarmos vias possíveis de acesso ao simbólico e à subjetividade. A Literatura acredito ser uma dessas vias. Se não na certeza ou garantia de alguma forma de triunfo do sujeito frente às mazelas (morais, éticas ou sociais) que o cercam, ao menos no modo de uma experiência singular, que se revele, por sua vez, no direito humano (Candido, 2011, p. 193) de, pela leitura literária: subsistirmos, ao encontrarmos alento nas palavras; estabelecermos pontes entre o mágico e fabular com o mundo em que habitamos; deslocarmo-nos no espaço, habitando outros mundos; experimentarmos as nuances do tempo, inclusive ao traçarmos paralelos históricos; encontrarmos um lugar só nosso (de fuga momentânea, de reflexão); conhecer o mundo e os sujeitos por prismas outros, por nós até então desconhecidos. Ler, portanto, como “exigência vital” (Petit, 2019, p. 42), como alento e, quiçá, transformação.

Feitas essas considerações iniciais, pretendo, nas linhas que seguem: a) refletir acerca da noção de dessimbolização, tomando por base os estudos de Joel Birman (2020); b) discorrer a respeito da noção de experiência subjetiva que, nos termos de Jorge Larrosa Bondía (2002), atrela-se a experiências de vida que marcam o sujeito, transformando-o; c) ponderar, à luz de Michèle Petit (2009; 2013; 2019), a leitura literária como via possível de acesso ao simbólico e, portanto, como possibilidade de simbolização e subjetivação; d) regatar memórias de leitura, a partir de fragmentos textuais, predispondo-me a um exercício de síntese leitora subjetiva; e e) entrever, ainda que de modo particular e subjetivo, uma possibilidade de leitura na escola compreendida como experiência emancipatória, sustentando-me, nesse aspecto, em bell hooks (2017).

Onde não mais se consegue pensar e metaforizar habita a dessimbolização


De acordo com o psicanalista Joel Birman (2020), na passagem da modernidade à época atual, as categorias constitutivas do sujeito sofreram um profundo abalo, capaz de afetar as dimensões da experiência humana (tanto individual como coletiva). Essa alteração subjetiva resulta, de acordo com o autor, de uma nova forma de mal-estar, responsável por abalar a constituição do sujeito e as tramas do laço social. Se, em O mal-estar da civilização, Freud (1974) mostra-nos o sujeito que lida com o sofrimento, ao se vincular à cultura e à sociedade; em O sujeito da contemporaneidade, Birman (2020) pondera o sujeito atual, cujas relações de alteridade são fissuradas.

O sujeito contemporâneo, nos termos de Birman (2020), habita uma época que se lhe mostra como “uma fonte permanente de surpresa” (Birman, 2020, p. 07). Imerso em um turbilhão de registros e acontecimentos, aos quais não consegue dar forma e sentido, nem prever ou controlar, esse sujeito então colapsa: experimenta vacilações, desorienta-se, perde referências simbólicas, sofre sensações como as de náusea e vertigem. No âmbito privado ou social, a subjetividade é, então, “virada de ponta-cabeça” (Birman, 2020, p. 07).

Ao interpretar essa nova configuração do mal-estar contemporâneo, Birman (2020) chama-nos a atenção para o que ele entende como a supremacia da categoria do espaço em oposição ao declínio da categoria do tempo. A prevalência do estar-aqui-agora, em detrimento de um pensar-para-além do já, ao fissurar a relação espaço-tempo, impede o sujeito de ser capaz de se descolar de um “eterno presente” (Birman, 2020, p. 09) em direção a um futuro. Por isso: um sujeito contemporâneo incapaz de antecipar, projetar e regular a própria existência.

O psicanalista brasileiro atrela essa “espacialização da experiência psíquica” (Birman, 2020, p. 09) à dor e ao desalento, sentimentos que apontam para um sujeito solipsista, preso em seu narcisismo, na ilusão, também, da autossuficiência. O autor contrapõe esses sentimentos aos de sofrimento e desamparo, experimentados pelo sujeito moderno freudiano, os quais, em oposição ao processo de espacialização, possibilitam a experiência psíquica da temporalidade e, portanto, da simbolização. Entendo, assim, a partir de Birman (2020), que, enquanto o sujeito moderno se desloca, dando vistas de sua historicidade, o sujeito contemporâneo prende-se à condição paralisante (num espaço de constantes repetições).

São efeitos dessa espacialização da experiência psíquica, ainda, conforme Birman (2020), a derrocada do pensamento e da linguagem. Com o declínio da temporalidade, o sujeito prende-se à descrição dos eventos e às fatualidades. Está sempre pronto a um tipo de ação instantânea. Por isso, suas reações, diante dos acontecimentos, tão imediatas e impensadas. A “incidência do excesso” (Birman, 2020, p. 132) gera uma espécie de “curto-circuito no registro do pensamento” (Birman, 2020, p. 132); então, “o pensamento se paralisa, pela própria impotência e pelo vazio que passa a ocupar o campo psíquico” (Birman, 2020, p. 132).

Quanto à linguagem, explica-nos Birman (2020, p. 135), torna-se cada vez mais uma “retórica instrumental”, deslizando ad eternum num discurso horizontal. Não há cortes verticais, próprios da metáfora. Não há margem (nem tempo), portanto, para a abstração, para a fantasia, para a (re)elaboração dos fatos, para que estes possam reter sentidos e gerar marca simbólica. A poeisis é substituída pela metonímia, pelas imagens em excesso. Trata-se, conforme o autor, do pensamento e da linguagem “em negativo” (Birman, 2020, p. 125). Como vemos, são afetadas as capacidades de pensar, de simbolizar, também de julgar.

Em diálogo com Birman (2020), Dufour (2005), em A arte de reduzir as cabeças, associa o processo de dessimbolização ao impacto do neoliberalismo. Para o filósofo, o sujeito contemporâneo, preso ao fetiche mercadológico, tem a razão reduzida, a ponto de viver espectralmente. Trata-se, conforme Dufour (2005), da morte do sujeito moderno, crítico kantiano e neurótico freudiano, substituído pelo sujeito pós-moderno, “precário, acrítico e psicotizante […] aberto a todas as flutuações identitárias e, consequentemente, pronto para todas as conexões mercadológicas.” (Dufour, 2005, pp. 21-22).

Ainda que Dufour (2005) se refira a uma forma sujeito dominante, e não necessariamente a um processo de psicotização generalizada, nos é, penso, cada vez mais nítido um tipo de reducionismo crítico (também metafórico) que se alarga por todas as esferas do humano. Já apontada por Hannah Arendt (1999), no século XX, quando a autora trata do nazismo, essa incapacidade humana de julgar ainda ressoa, adquirindo também outras formas, no século XXI. Não à toa, um mundo cuja banalidade (do mal, da vida, dos acontecimentos, da ética, da política, das experiências) se vê marcado por fake news, polaridades, modos diversos de preconceito, para citar alguns exemplos.

Em tempos de dor e desalento a experiência arruína-se


O sujeito contemporâneo, na perspectiva de Birman (2020), é o mesmo que, sob as lentes de Jorge Larrosa Bondía (2002), não consegue experienciar. Não consegue “dar-se tempo e espaço” (Bondía, 2002, p. 24) para que os acontecimentos que vivencia sejam capazes de repousar na memória, de modo a gerar marca simbólica. A profusão de informações, o imperativo da opinião, a falta de tempo e o excesso de trabalho promovem, na visão do filósofo espanhol, uma espécie de “lógica de destruição generalizada da experiência” (Bondía, 2002, p. 23).

Para Bondía (2002), a experiência é o que nos atravessa e que fica, que deixa rastro e sentido, cujos efeitos reverberam subjetivamente. É, portanto, “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca” (Bondía, 2002, p. 21). Trata-se de uma postura existencial que responde a contrapelo aos tempos da urgência, do choque, dos estímulos exacerbados, dos quadros de repetição ininterrupta. O sujeito da experiência é aquele, então, que resiste à lógica destrutiva da experiência, ao excesso do amanhã, e, frente ao caos, decide ir mais devagar, olhar mais de perto, ouvir com mais calma. É o sujeito da pausa e da suspensão.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (Bondía, 2002, p. 24).

Na sequência de suas explanações, detendo-se à terminologia da palavra experiência, Bondía (2002) observa que o sujeito da experiência é aquele que decide por ex-por-se e, ao fazê-lo, submete-se aos riscos comuns aos descobridores, aos viajantes. No entanto, se, por um lado, a exposição ao desconhecido conduz ao perigo, ao incerto; por outro, mobiliza o sujeito ao movimento da descoberta, ao descolamento da experiência, o que, por sua vez, lhe descortina a possibilidade de transformação. Diante de uma experiência que marca, portanto, nunca permanecemos os mesmos.

A experiência da transformação, ainda conforme Bondía (2002), permite ao sujeito o encontro com o saber da experiência, o qual “se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana” (Bondía, 2002, p. 26). Conhecimento e vida, no entanto, em acepção ressignificada. Não se trata nem do conhecimento aos moldes positivistas (infinito, universal, objetivo, experimental), nem da vida apenas como um ciclo biológico cujas necessidades são satisfeitas de forma instantânea (em geral, pela ordem do consumo). Diz respeito, antes, ao conhecimento e à vida situados no âmbito do singular, do subjetivo. Por assim ser, o saber da experiência é sempre único, ímpar, inalienável.

Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. (Bondía, 2002, p. 27).

Assim, não é possível a dois sujeitos uma mesma experiência. Um acontecimento que venha a se repetir não será interpretado da mesma forma. As mesmas páginas de um livro, por exemplo, por mais que deem a ver as mesmas palavras, possibilitarão experiências diferentes a sujeitos distintos. Ainda, darão a um mesmo sujeito, que se permita à releitura, sempre novos sentidos.

Considero relevante, ainda em suas notas sobre a experiência, as reflexões que Bondía (2002) dirige à educação. Pensando o abandono da experiência (singular e única) também na escola, o autor observa como os estudantes são submetidos a propostas de aprendizagem que, cada vez mais, exigem deles que retenham a maior quantidade de informações para, em seguida, serem capazes de emitir um juízo de valor acerca do turbilhão de dados e fatos aos quais foram expostos.

É inclusive, conforme o autor, a lógica do que muito se difunde por “aprendizagem significativa” (Bondía, 2022, p. 23). O estudante daria mostras desse “significado” ao ser capaz de emitir seu ponto vista diante do que “absorveu”. O paradoxo, assinala o filósofo espanhol, é entendermos essa opinião como algo da ordem do particular e do subjetivo, quando, em muitas das vezes, refere-se a respostas elaboradas para “adequarem-se” a um gabarito, dando mostras de práticas reprodutivistas, pouco engajadas. Esse modo de aprender, atrelado à ordem do capital, mencionada por Bondía (2002), remete-me à concepção bancária de educação, aquela em que, “em lugar de comunicar-se, o educador faz ‘comunicados’ e depósitos que os educandos, meras incidências, recebem pacientemente, memorizam e repetem.” (Freire, 1987, p. 33).

Então, à luz de Bondía (2002), compreendo que a experiência permite ao sujeito da experiência o encontro com o saber da experiência. É necessário, no entanto, que esse sujeito se permita experienciar. Não se trata de algo simples, tendo em vista o pragmatismo e utilitarismo que atravessam as subjetividades, impedindo o sujeito de tomar consciência do que o paralisa. Por essa razão, é preciso de alguma forma conter o arruinamento da experiência, vinculado, conforme entendo, ao abalo da constituição subjetiva e à dessimbolização. Ao experienciar, apropriando-se do saber da experiência, o sujeito seria então capaz de deixar algo de si como herança: um modo de resistência, eu penso, frente à miséria da experiência, de que nos fala Benjamin (1987).

Deixar-se habitar pela linguagem literária: uma possível experiência de simbolização


Vejo na leitura literária uma possibilidade para a experiência subjetiva, nos termos de Bondía (2002), e para a experiência da temporalidade, então em declínio, conforme Birman (2020). Isso porque acredito que dimensões narrativas e poéticas, ao atravessarem o sujeito, têm poder para chegar ao que lhe é íntimo e particular, dando vez à simbolização, como nos explica Petit (2013). Essa simbolização, por sua vez, atrela-se à construção que faz o sujeito de si mesmo (Petit, 2013, p. 39), no curso (e decurso) de sua constituição subjetiva. Nesse aspecto, a antropóloga francesa faz menção a escritores que relataram “como a leitura havia lhes possibilitado descobrir seu mundo interior e desse modo se tornarem mais autores de seus destinos” (Petit, 2013, p. 40). É algo da ordem de uma descoberta de si, que transforma o sujeito, o qual, ao voltar-se para dentro, consegue, a partir daí, compreender melhor o que lhe ocorre externamente.

No entanto, e é uma das questões que Petit (2013) apresenta em seu livro Leituras: do espaço íntimo ao espaço público, que a mim muito interessa: “de que maneira a leitura, e em particular a leitura de obras literárias, contribui para a elaboração da subjetividade”? (Petit, 2013, p. 40). Considerando pesquisas que realizou junto a jovens frequentadores de uma biblioteca e recorrendo também a relatos de leitores e escritores com perfil de leitura diferente daqueles, Petit (2013) observa, especialmente no capítulo 3 dessa obra1, que esses sujeitos compartilham experiências subjetivas comuns de leitura.

Um dos aspectos que a autora pontua é a recorrência de menções feitas pelos leitores à elaboração de um espaço próprio, íntimo, a partir do qual, em geral, “refugiam-se”, passando a habitar outros espaços e tempos. Ou seja, um espaço simultâneo de abrigo e de desterritorialização. Para Petit (2013, p. 43), “esse espaço criado pela leitura não é uma ilusão. É um espaço psíquico que pode ser o próprio lugar de elaboração ou de reconquista de uma posição de sujeito”. Ou seja, o homem se faz sujeito (de seu tempo e de sua história) também pela leitura. E isso porque, conforme a autora, ao ler, o sujeito não o faz passivamente; antes, apropria-se do que lê, interpreta o texto, deslizando “entre as linhas seus desejos, suas fantasias, suas angústias” (Petit, 2013, p. 43). Aludindo a Michel de Certeau, Petit (2013) associa a experiência dos leitores à dos viajantes que “[…] circulam em terras alheias; são nômades que caçam furtivamente em campos que não escreveram.” (Certeau, 2000, como citado em Petit, 2013, p. 44). Se viajam, ex-põem-se aos riscos das descobertas, lembrando aqui as reflexões de Bondía (2002). Permitem-se, portanto, viver experiências capazes de, ao habitarem a memória, produzir marcas simbólicas.

Outro aspecto mencionado por Petit (2013) refere-se a processos de identificação do leitor com personagens cujos conflitos se lhe assemelham. A autora observa que, embora ocorram esses processos identificatórios, é comum um modo de ler em que o sujeito salta páginas de livros diversos, carregando consigo apenas fragmentos, a partir dos quais estabelece relações com os acontecimentos que o cerca. Nesse aspecto, segundo nos explica a antropóloga, o leitor “está à espreita, à caça de palavras: trata-se, talvez, antes de tudo, de uma busca de simbolização” (Petit, 2013, p. 45). Ainda, conforme a autora:

[...] Essas frases, esses fragmentos de textos, funcionam como insigths, como tomadas de consciência súbitas de uma verdade interior, como esclarecimentos sobre uma parte de si mesmos até então desconhecida. Isso permite a eles [adolescentes e adultos] decifrarem sua própria experiência. É o texto que “lê” o leitor, que sabe muito sobre ele, sobre regiões nele que ainda não haviam sido exploradas. O texto, de maneira silenciosa, vai liberar algo que o leitor tem dentro de si. E às vezes o leitor encontra ali a energia, a força para sair de um contexto em que estava preso, para se diferenciar, para se libertar dos estereótipos aos quais estava preso. (Petit, 2013, p. 46).

Petit (2013) explica-nos que certos fragmentos podem reverberar por toda vida, de modo que “[…] Existe todo um trabalho, consciente ou inconsciente, e um efeito a posteriori, uma evolução psíquica de certos relatos ou de certas frases, às vezes muito tempo depois de os termos lido.” (Petit, 2013, p. 48). A autora observa, também, que textos que se aproximam às experiências de vida dos leitores nem sempre são aqueles que mais lhes tocam ou os ajudam; ao contrário, as experiências díspares são as que mais impactam de modo subjetivo.

Assim, ainda que não deixe de acontecer a identificação, ocorrem – e Petit ressalta essa ocorrência em várias passagens de suas obras –, elaborações psíquicas profundamente arraigadas a processos de simbolização, vinculadas ao poder metafórico dos textos. Conforme a autora, a metáfora permite ao leitor manter distância do que lê. Esse distanciamento dá espaço para inferências, correspondências, associações e deslocações, atividades atreladas aos processos simbólicos de condensação e deslocamento. Contudo, ainda que efeitos reparadores e terapêuticos próprios de elaborações psíquicas provenientes da leitura possam ocorrer, “[…] é impossível prever quais serão os livros aptos a ajudar alguém a se descobrir ou a se construir.” (Petit, 2013, p. 48).

Para além do tempo que se estende pelas páginas lidas, Petit (2013) também discute como a leitura nos permite experienciar um tempo próprio, “distante da agitação cotidiana, em que a fantasia tem livre curso” (Petit, 2013, p. 49), permitindo-nos “imaginar outras possibilidades” (Petit, 2013, p. 49). Lembra-nos de que a atividade onírica está diretamente atrelada ao pensamento e à criatividade. Ou seja, ao pausarmos o tempo cronológico – permitindo-nos o tempo do sonho e da fantasia –, passamos por elaborações psíquicas que contribuem para os modos como interpretamos o mundo e intervimos em nossa realidade. Nesse aspecto, entendo que, pela leitura, o leitor é capaz não só de pausar o tempo cronológico (de um agora caótico, intempestivo) como também, no interior desse tempo pausado, criar uma linha temporal outra (expansiva e transgressora).

Ao pontuar aqui essas considerações à luz de Petit (2013), vejo como a leitura, ao possibilitar ao sujeito modos de vivenciar formas outras de espaço, tempo e linguagem, categorias próprias da simbolização, oferece-lhe meios para que, ao conseguir resistir aos modos da espacialização psíquica, possa sentir os efeitos da temporalidade, retomando as reflexões de Birman (2020). Penso ainda em como uma experiência dessa ordem também se vincula à experiência subjetiva, que, nos termos de Bondía (2002), é capaz de transformar os sujeitos. Petit (2013) então nos mostra como a leitura, especialmente a literária, é via possível de simbolização e subjetivação, pois se apresenta como um tipo de experiência que marca, que ressignifica espaço e tempo, e que fica. Não à toa, acredito, trago sempre comigo aquele herói que escuta o centro da terra e, junto a ele, a voz e gestos de meu pai.

Um pouco mais da leitura que habita em mim e do que dela depreendo


Ao refletir acerca da relação entre experiências subjetivas de leitura e um jeito particular de interpretar o mundo e a realidade – modos de simbolizar e pensar –, permito-me, após as linhas acima traçadas, reabitar algumas outras leituras que fiz, compartilhando o que delas ecoa e reverbera. Diferentes da leitura de infância, a qual tive acesso de forma audível, pela voz de meu pai, referem-se a quatro outros textos que li já adulta (depois de formada em Letras e então professora). Vejamos.

São muitos os que dizem compreender melhor a guerra, ao se debruçarem sobre as páginas de um livro. Foi o que senti, por exemplo, ao ler Baratas, de Scholastique Mukasonga. Creio que não me seria possível fabular, não de modo tão profundo e “real”, o horror da guerra civil que acometeu Ruanda, nos idos tão recentes de 1990; algo tornado possível apreender pela voz-testemunha da autora, uma tutsi, sobrevivente desse massacre tão cruel e desumano. A narrativa, carregada de cenas tristes, racionalmente injustificadas – como a de uma grávida brutalmente assassinada (na frente de uma filha pequena), cujo feto lhe é arrancado do ventre e sobre ela lançado (Mukasonga, 2018, p. 143) –, tratou-se de uma leitura que me possibilitou imaginar o que eu supunha humanamente inimaginável, reiterando em mim, pela dor que vi no outro, a certeza de que, no que diz respeito à uma guerra, nada vale ou justifica.

Algo similar, no que diz respeito a imaginar o que supunha impossível de ser, senti ao ler Quarto de despejo. A narrativa de Carolina Maria de Jesus me pôs à frente, de modo paradoxalmente poético, os padecimentos de uma mãe que sofre, dia pós dia, a angústia da não possibilidade de alimentar seus filhos. Para evitar a dor da fome, trabalha diariamente como catadora de papel. Cada centavo que consegue significa um dia a mais de sobrevivência. Dias chuvosos são sempre dias de incerteza. Certa vez, em 22 de maio de 1955, quando “[…] o dinheiro não deu para comprar carne” (Jesus, 2014, p. 41), Carolina preparou macarrão (possivelmente aquele que haviam encontrado no lixo dias antes) com cenoura, sem óleo. Segundo ela, “[…] ficou horrível.” (Jesus, 2014, p. 41). Mesmo assim, sua filha Vera pediu mais. A criança solicita, na sequência: “– Mamãe, vende eu para a Dona Julita, porque lá tem comida gostosa.” (Jesus, 2014, p. 42). Ler algo assim leva-nos ao encontro da palavra que grita, que, mesmo lida em silêncio, nos transforma, nos traz certezas mais contundentes diante de injustiças sociais. A fome deveria ser algo proibido ao filho de todo homem.

Há leituras, contudo, que me deixam marcas de forma diversa dessas que permitem “ver de perto”, “habitando-se a dor do outro”. Possibilitam-me a apreensão da palavra pelo enigma imbuído ao jogo linguístico. São textos que, de algum modo, brincam com a linguagem, diluem barreiras entre o real e a fantasia e não pretendem, eu penso, que algo seja visto ou compreendido em toda sua claridade. Lembro, nesse aspecto, do conto “Pirlimpsiquice”, de Guimarães Rosa. Já no começo da narrativa, afirma o narrador: “Aquilo na noite do nosso teatrinho foi de Oh. O estilo espavorido. Ao que sei, que se saiba, ninguém soube sozinho direito o que houve.” (Rosa, 2001, p. 86). O não saber direito o que se houve integra-se, no conto, ao fazer de conta (do teatro, do universo infantil) e às incertezas da memória (desveladas pela linguagem cuja sintaxe titubeia, dando vistas, também, à metalinguagem). Contudo, do que mais me lembro dessa narrativa foi que ri muito com a “com confusão” (Rosa, 2001, p. 94) das crianças, ao apresentarem, ao final, um espetáculo de teatro diverso daquele que era para ser apresentado (e que jamais poderia ser reapresentado, tamanha improvisação). O quanto, penso, não improvisamos nessa vida? O quanto o imprevisto por tantas das vezes não se faz melhor? Deveríamos nos preparar mais para os imprevistos…

Lembro-me, ainda, para finalizar este breve momento de reminiscências literárias, de “O menino que carregava água na peneira”, poema em que Manoel de Barros nos apresenta uma criança que, ao ver “[…] que podia fazer peraltagens com as palavras” (Barros, 2021, p. 22), torna-se capaz de “[…] modificar a tarde botando uma chuva nela” (Barros, 2021, p. 25). Um jovem que fazia prodígios com seus despropósitos e cuja mãe entendera, com ternura, tratar-se de um poeta que iria “[…] carregar água na peneira a vida toda.” (Barros, 2021, p. 28.). Todas às vezes que retomo esse poema, pergunto-me se saberíamos, em interações cotidianas, recorrer à essa linguagem da infância e do sonho. Como seria estabelecer relações sociais à base da linguagem poética? Como seria trocar palavras ocas de sentido, puramente instrumentais, utilizadas para “designação imediata” (Petit, 2013, p. 108), por outras carregadas de apreço? É que palavras que carregam apreço não são ditas levianamente, pois têm o peso da verdade. Quem, nos dias de hoje, é capaz de sustê-las?

Tanto lá, nas leituras da infância, como aqui, nas da fase adulta, vejo que as narrativas (orais e escritas): a) tanto nos dizem algo que, de algum modo, ainda não havíamos apreendido completamente (pela própria incapacidade que tem a linguagem em dizer tudo e pela própria condição humana em pôr-se a rever e reconsiderar os acontecimentos); b) como também nos aproximam de formas diversas pelas quais se manifesta a linguagem, especialmente em sua dimensão literária. Ao nos permitirmos ouvir ou ler textos conformados em linguagem polissêmica, em dimensão poética, rompemos, portanto, com a linguagem tão só metonímica, instrumental e utilitária. Somos invadidos por uma forma-língua que nos dá acesso, pelo simbólico, a outras possibilidades de apreender sentidos, por conseguinte, impulsionam-nos a interpretações de outra ordem, penso que mais complexas e sutis.

A partir deste exercício subjetivo de análise de minhas leituras, na linha reflexiva que então teço, venho compreendendo, cada vez mais, que a leitura, notadamente a literária, ao agir sobre o sujeito, é capaz de possibilitar-lhe recortar o Real que se lhe escapa2. Sob o efeito subjetivo da leitura, portanto, o leitor torna-se ainda mais apto a gerar sentidos e interpretar sua existência e os acontecimentos que a circundam. Isso muito em razão de um traço peculiar da linguagem literária que, em sua essência, dá vazão ao simbólico, contribuindo, dessa forma, para a formação do imaginário. Assim, em meu entender, processos simbólicos possibilitam ao sujeito apreender partes significativas do Real, a ponto de conformar significantes e sentidos. Se a Literatura, nesse horizonte, dá margem à simbolização do Real, como vimos a partir de Petit (2013), também pode atuar, portanto, no processo de formação do sujeito, no que envolve a constituição do Eu.

E então, no interior de experiências leitoras subjetivas, permitindo-nos o encontro com o literário (com outros mundos e sujeitos), não apenas construímos uma memória de leituras, como também sofremos o efeito subjetivo das leituras experienciadas. Esse efeito, não visível materialmente, imbui-se à nossa constituição subjetiva. Não há como medi-lo nem o precisar, mas é possível sentir dele traços, tanto em nosso modo de ver e compreender o mundo como em nossa maneira de apresentar o mundo a alguém. É um efeito, portanto, que “penetra surdamente” (Andrade, 2012, p. 12) em nosso modus vivendi. Se se nos torna um saber próprio, singular, podemos então também compartilhá-lo enquanto experiência. Deixaríamos, retomando as reflexões traçadas por Benjamin (1987, pp. 117-118), rastros e vestígios.

E como professora, o que mais tenho a dizer?


Precisamos ler mais com nossos alunos. Precisamos ser mais leitores e mediadores de leitura. Em um evento acadêmico voltado à leitura e mediação, promovido pelo Grupo de Pesquisas sobre Educação Literária, da Universidade Federal do Pernambuco (GPEL-UFPE), transmitido pelo YouTube, em junho de 2022, considerações acerca da mediação leitora, fornecidas pela palestrante Sônia Travassos, desestabilizaram-me positivamente. A ela foram dirigidas questões como a seguinte, que parafraseio: “Como mediar a leitura, quando os estudantes se negam a ler, nem abrem os livros?” (GPEL-UFPE, 2022). A resposta, que sintetizo: “Abra você o livro para eles, leia para eles, leia junto com eles.” (GPEL-UFPE, 2022)3.Tal resposta me alertou, porque a pergunta, em minha interpretação, tanto me soou como algo da ordem do inalterável, como me remeteu, de alguma maneira, à recusa à leitura, que pontuei na introdução deste meu texto.

Não abrem os livros”. E nós, abrimos os livros? Compartilhamos sentidos provenientes das leituras realizadas em sala de aula? A resposta de Travassos (2022) remeteu-me à Ensinando a transgredir, obra em que bell hooks (2017) muito nos diz acerca da importância de uma educação libertária e dos desafios que enfrentamos, professores e estudantes, ao tentarmos romper com um paradigma conservador de educação. Pensar a leitura como experiência compartilhada, em que o professor não apenas lê para os estudantes, mas lê junto a eles, é algo que se me apresenta como uma superação de um modelo conversador de ensino; possibilita-me vislumbrar uma prática de leitura cujos sujeitos, ao aproximarem-se do texto lido, predispõem-se aos efeitos da leitura.

Ainda no tocante a modos e formas de leituras conservadoras, não são incomuns, por exemplo, ainda hoje, práticas voltadas a metas de leitura que se restringem a uma avaliação escrita acerca da obra lida. A leitura de um livro, ou partes dele, muitas das vezes, é realizada tão somente fora do contexto escolar e “cobrada” em aula. Quando do trabalho com texto em sala, leem-se textos em geral mais curtos; na sequência, são realizadas perguntas de natureza pragmática, dando a entender que existe um único modo de ler o texto; que existem respostas corretas concernentes ao que foi lido; ou que o texto é apenas um recurso para discussões de natureza gramatical ou de tipologia textual.

No diálogo em que bell hooks e Ron Scapp, em Ensinando a transgredir, discutem a prática pedagógica libertária, dois pontos me chamam particular atenção. Embora ambos os autores reflitam acerca de um ethos docente que, com vistas à emancipação dos sujeitos, circunda toda e qualquer prática de aula, penso que possamos pensar estes pontos no contexto da leitura literária. O primeiro deles diz respeito ao professor que quer ressignificar sua proposta metodológica, mas não sabe como. Ao debater com Scapp, menciona bell hooks (2017, pp. 190-191):

[…] Mesmo aqueles entre nós que fazem experiências com práticas pedagógicas progressistas têm medo de mudar. Consciente de mim mesma como sujeito da história, membro de um grupo marginalizado e oprimido, vitimada pelo racismo, sexismo e elitismo de classe institucionalizados, eu tinha um medo terrível de que meu ensino viesse a reforçar essas hierarquias. Mas eu não tinha absolutamente nenhum modelo, nenhum exemplo de o que significaria entrar na sala de aula e ensinar de modo diferente.

Na mesma linha reflexiva, a autora apresenta-nos o segundo ponto que penso requerer discussão: “O impulso de experimentar práticas pedagógicas pode não ser bem recebido por alunos que frequentemente esperam que ensinemos da maneira como já estão acostumados” (hooks, 2017, p. 191). E então? O que fazer quando as práticas ressignificadas de leitura não são legitimadas? Quando a recusa envolve também certa resistência ao novo e desconhecido?

É também bell hooks (2017) quem nos alerta: “O que quero dizer é que é preciso um compromisso fortíssimo, uma vontade de lutar, de deixar que nosso trabalho de professores reflita as pedagogias progressistas.” (hooks, 2017, p. 191). Penso que seja esse compromisso fortíssimo, uma convicção ética, que possa nos permitir compreender que: a) não há receita pronta para transformações na prática docente, pois que toda e qualquer ação pedagógica se situa em contexto único, de indiscutível singularidade; b) no que diz respeito à mudança de paradigma educacional, não se trata de algo que ocorra de modo repentino e radical; antes, porém, de modo gradativo, num curso não-linear.

Permitindo-me, então, elucubrar: como nossos alunos se organizam para ler? Estão sempre enfileirados? Sempre na sala de aula? Experienciam a leitura na biblioteca, ao ar livre? As leituras são sempre individuais e silenciosas ou ocorrem também de modo coletivo? Leem oralmente? No que se refere ao texto lido, respondem tão só a um número de questões, mediante um gabarito, ou têm a oportunidade do diálogo, da troca, da controvérsia e dos (des)entendimentos? Nós, professores, somos também leitores? Pensamos a mediação leitora? Pensamos a escola como uma comunidade de leitores? Como a ementa de nossos cursos apresentam as propostas de leitura? Enfim… há espaços e tempos para que a leitura, ao invadir os sujeitos, permita-lhes subjetivar e simbolizar? Se, por um lado, não há respostas absolutas para essas questões; por outro, pluralizam-se as possibilidades de experiências leitoras ressignificadas.

Dentre as práticas de leitura que podem ser experienciadas em contexto escolar, destaco as rodas de leitura, pois as vejo como um verdadeiro espaço-tempo de encontro e de partilha. Os sujeitos organizam-se, em geral, em círculo (ou semicírculos, mediante condições estruturais) e realizam leituras coletivas, lendo-as em voz alta, comentando-as, retomando partes dos textos lidos, explorando sentidos, reelaborando ideias e concepções. Trata-se, eu penso, de uma proposta pedagógica por meio da qual se propõem, simultaneamente, diferentes formas de encontros: do leitor com o texto; do leitor com outros leitores; do mediador de leitura com seus interlocutores (e destes com aquele). Em meu entender, uma experiência que possibilita aos leitores falar do texto lido e ouvir acerca dele. Permite, ainda, que os olhos que se deitaram sobre o texto se levantem, em seguida, para destinarem-se aos sujeitos ao redor. Ouvir e ver. Viver. É um modo, portanto, de leitura implicada, experienciada: é algo que toca e fica, relembrando Bondía (2002).

Então, caminhando ao desfecho de minhas reflexões, penso que, se queremos permitir que a leitura habite cada leitor, é preciso que pensemos espaços e tempos, para que cada sujeito, a seu modo, encontre-se com a leitura, nem que, para isso, tenhamos que não apenas abrir-lhe o livro, como também acompanhá-lo nessa experiência subjetiva: uma jornada de signos e sentidos. Nesse aspecto, um mediador, uma mediadora, que se põe à leitura de si e do outro, que se dispõe a um compromisso fortíssimo, nos termos de bell hooks (2017), é pedra fundamental nesse processo, tendo em vista que: mediar a prática leitora é permitir que a leitura (linguagem em cor, luz e som) viva e reverbere em cada sujeito.

Referências


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Rosa, J. G. (2001). Primeiras estórias. Nova Fronteira.


Sobre a autora


Raquel Lima Silva Costa


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, Suzano, SP, Brasil

rlsilva@ifsp.edu.br

https://orcid.org/0000-0002-9419-8323


Mestra em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp) (2010). Doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), campus Suzano. Membra do Grupo de Estudos e Pesquisa Produção Escrita e Psicanálise (GEPPEP).


Resumen


En este texto teórico-ensayístico, reflexiono inicialmente sobre la desimbolización y la ruina de la experiencia, apoyándome, respectivamente, en Birman (2020) y Bondía (2002). En la secuencia, a la luz de Petit (2009; 2013; 2019), pienso la Literatura como vía posible de simbolización y subjetivación. Recurro a bell hooks (2017), considerando cómo la enseñanza de la literatura, al tener en cuenta la formación subjetiva, se muestra como práctica educativa emancipatoria. Mis reflexiones están permeadas por experiencias subjetivas de lectura que repercuten en la manera que, como docente, pienso la práctica lectora. Entonces, concluyo, vislumbrando posibilidades para la experiencia de la lectura literaria en el aula.


Palabras clave: Literatura. Experiencia. Simbolización.



Abstract


In this theoretical-essayistic text, I initially reflect on the desymbolization and ruination of experience, anchoring myself, respectively, in Birman (2020) and Bondía (2002). Then, in the light of Petit (2009; 2013; 2019), I think of Literature as a possible way for symbolization and subjectivation. I turn to bell hooks (2017), considering how the teaching of literature, when taking the subjective formation into account, shows itself as an emancipatory educational practice. Subjective experiences of reading permeate my reflections that reverberate in the way in which, as a teacher, I think about reading practice. So, I conclude, envisioning possibilities for the experience of literary reading in the classroom.


Keywords: Literature. Experience. Symbolization.



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Referência completa (APA): Costa, R. L. S. (2023). A leitura literária como via possível para processos de simbolização e subjetivação. Linhas Críticas, 29, e46786. https://doi.org/10.26512/lc29202346786


Referência completa (ABNT): COSTA, R. L. S. A leitura literária como via possível para processos de simbolização e subjetivação. Linhas Críticas, v. 29, e46786, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202346786


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1 Trata-se do capítulo “Leituras de obras literárias e construção de si mesmo” (Petit, 2013, pp. 39-63).

2Para Lajonquière (2013), o Real escapa ao sujeito, e este, em atitude remissiva, tenta capturar aquele: “Esta remissão condena o sujeito a falar na tentativa de obturar a fenda que desgarra seu ser, mas também o condena a (re)construir objetos (a realidade socialmente compartilhada) na tentativa de esgotar o real” (Lajonquière, 2013, p. 239).

3O trecho da palestra a que me refiro mais especificamente encontra-se entre 47’38 e 52’40 do vídeo.

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