A formação dos juízes eleitorais na visão dos formadores e dos magistrados

La formación de jueces electorales en la visión de formadores y magistrados

The training of electoral judges in the view of trainers and magistrates

Alcineia Suely de Sales, Marilene Ribeiro Resende




Destaques


Aspectos didático-pedagógicos são elementos constituintes da docência nos cursos de formação de formadores de magistrados.


Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados desempenha importante papel na visão dos participantes.


Formação de formadores de magistrados é uma proposta que busca efetiva preparação de juízes eleitorais.


Resumo


Este artigo orienta-se pela questão: Qual é a visão dos formadores de juízes eleitorais sobre a sua formação e atuação na docência, e a visão dos juízes eleitorais, que passaram pelo processo formativo proposto pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)? Foi aplicado um questionário aos formadores de magistrados eleitorais de Minas Gerais, num total de dezessete, e um questionário a onze juízes eleitorais. Em síntese, apesar de a maioria dos formadores não ter formação pedagógica específica, eles percebem a importância dos aspectos didáticos-pedagógicos, para que os cursos de formação de magistrados contribuam para o exercício profissional desses juízes.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Formação de formadores. Docência. Enfam. Formação de juízes.


Recebido: 13.02.2023

Aceito: 03.07.2023

Publicado: 17.07.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347147


Introdução


A formação de formadores remete a pensar, geralmente, em processos que se efetivam por meio de cursos, de curta ou de longa duração, incluindo os de graduação e de pós-graduação, que têm o objetivo de preparar e de desenvolver profissionalmente pessoas para o exercício da docência como profissão, nas instituições escolares da educação básica e nas instituições de ensino superior. Mas o que é a docência? Limita-se ela aos espaços escolares e acadêmicos, nos quais esse conceito vem sempre associado ao ensino e à aprendizagem de disciplinas e/ou de componentes curriculares de um dado campo de estudos e de saberes?

A docência é aqui compreendida de uma forma mais ampla, como uma ação educativa e processo intencional e metódico, que envolve conhecimentos advindos de diferentes fontes, exercida em diferentes espaços. São conhecimentos específicos, pedagógicos, didáticos, interdisciplinares, perpassados por valores éticos, políticos e estéticos próprios do ensino-aprendizagem, fundamentados em diferentes visões de mundo. Assim sendo, a docência exercida em qualquer âmbito, ligada a diferentes profissões, supõe processos formativos.

Pretende-se avançar nesta concepção e buscar compreender a formação de formadores em outros espaços, especificamente, no da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), no sentido de ampliar esse conceito, assim como o de docência. Este artigo é resultado de pesquisa que se propôs a analisar se a proposta, explicitada nos documentos normativos e institucionais, de formação de formadores de juízes eleitorais da Enfam, efetiva-se na prática, na visão dos formadores e dos juízes eleitorais. A Enfam é vinculada ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e é responsável por conceber e ministrar cursos de formação inicial e continuada de magistrados estaduais, federais e eleitorais, bem como realizar a formação dos formadores das Escolas Judiciárias Eleitorais.

No caso específico da formação de juízes eleitorais, foco deste artigo, há que considerar que o Direito Eleitoral, ainda, não se constitui, até o momento, como disciplina obrigatória nos cursos de graduação em Direito no Brasil, portanto, a maioria dos juízes eleitorais em atuação não cursou essa disciplina na graduação. Cabe registrar que, em 06 de abril de 2023, o Conselho Nacional de Educação abriu Edital de Chamamento, para Consulta Pública acerca de proposta de alteração da Resolução CNE/CES nº 5/2018 (Brasil, 2018), para incluir o Direito Eleitoral dentre os conteúdos obrigatórios, o que poderá alterar essa situação. Também, é importante considerar que os juízes eleitorais atuam por apenas dois anos, em razão da rotatividade imposta pela Constituição Federal, o que torna a oferta de formação uma necessidade contínua.

Neste contexto, a pesquisa de caráter documental e de campo, cujos resultados são tratados neste artigo, visa responder à seguinte indagação: Qual é a visão dos formadores de juízes eleitorais sobre a sua formação e atuação na docência, e a visão dos juízes eleitorais, que passaram pelo processo formativo proposto pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam)? Assim, tem como objetivo, compreender a formação e a atuação didático-pedagógica de formadores de juízes eleitorais, a partir dos documentos normativos e institucionais da Enfam e das percepções de formadores e de magistrados. Inicialmente serão tratados os aspectos metodológicos, em seguida, será caracterizada a Enfam, em sua organização e pressupostos, posteriormente a visão dos formadores e, finalmente, a dos magistrados, sobre o processo formativo, com ênfase nos aspectos didático-pedagógicos dos cursos.

Aspectos metodológicos


A pesquisa realizada é de abordagem qualitativa, pois inclui os sujeitos participantes e os pesquisadores em sua singularidade, embora utilize dados quantitativos, que contribuem para a compreensão do objeto de pesquisa. Não há intenção de generalização, mas, sim, a preocupação em compreender o objeto, situado social e historicamente. Utilizou-se a pesquisa documental, que considerou como fonte, os documentos produzidos pela Enfam: Diretrizes Pedagógicas (Brasil, 2017) e seus Apêndices A e B; Projeto de Desenvolvimento Institucional 2019-2023 (Brasil, 2019), além da busca de dispositivos legais que regulamentam a preparação e o aperfeiçoamento de magistrados. Os princípios pedagógicos, os objetivos e a organização foram o foco da análise desses documentos.

A pesquisa de campo foi realizada por meio de um questionário aplicado aos juízes eleitorais e outro aplicado aos formadores de magistrados. Com os formadores, foi realizado, também, um grupo focal, cujos resultados não constam neste artigo. O questionário dos formadores está organizado em cinco blocos: I – Perfil do formador; II – Atuação como formador da Escola Judiciária Eleitoral de Minas Gerais, envolvendo a formação e a atuação didático-pedagógica; III – Desafios na atuação didático-pedagógica, no que se refere ao planejamento da aula, ao ministrar a aula e à avaliação da aprendizagem dos alunos. O questionário aplicado aos juízes eleitorais possui um bloco de questões voltado à formação; outro bloco constituído de questões que visam avaliar os cursos recebidos para o exercício da função.

Foram convidados os formadores em exercício da Escola Judiciária Eleitoral de Minas Gerais, estado onde atuam os pesquisadores, e cadastrados no banco nacional de formadores da Enfam, num total de 21, tendo ocorrido o retorno de 17 questionários. Quanto ao grupo de juízes eleitorais, todos os magistrados, que estão exercendo a função eleitoral em Minas Gerais, foram convidados, porém conseguiu-se a devolução de 11 questionários. O convite aos formadores foi feito pelo e-mail, que está disponível no banco de formadores, e aos juízes pela Escola Judiciária do TRE/MG, também, por e-mail. Para a aplicação do questionário, foi utilizado o Google Forms, em razão das condições sanitárias (Pandemia) e em razão de os participantes residirem em municípios diversos do estado de Minas Gerais. Como se trata de pesquisa com seres humanos, o protocolo de pesquisa foi submetido ao Conselho de Ética em Pesquisa e devidamente aprovado e, como há etapas em ambiente virtual, foram observadas as orientações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), conforme Ofício Circular n.º 2/2021 (Brasil, 2021).

Finalizada a coleta, para a apresentação dos dados do questionário e a sua análise foram utilizados recursos da estatística descritiva, com a triangulação de fontes, buscando dialogar com os aportes advindos da pesquisa bibliográfica e documental.

A Enfam: objetivos e organização


O Direito, como um todo, é uma área do conhecimento que requer uma constante atualização dos seus profissionais, posto se tratar de uma ciência humana, portanto, em constante evolução. Para o ingresso na magistratura, o bacharelado em Direito é a formação inicial exigida, sendo que a investidura na carreira da Magistratura ocorre mediante concurso de provas e títulos, conforme disciplina a Resolução nº 75/2009, do Conselho Nacional de Justiça (Brasil, 2009). Inicialmente, é importante destacar a relevância das Escolas Judiciais no contexto da preparação, aperfeiçoamento e promoção dos magistrados, as quais tem assento Constitucional, conforme dispõe o art. 93, inciso IV, da Constituição Federal (Brasil, 1988).

A Enfam é o órgão oficial de formação, capacitação e treinamento dos magistrados brasileiros, à qual compete a regulamentação, a autorização e a fiscalização dos cursos oficiais para ingresso, vitaliciamento e promoção na carreira da magistratura. As ações de capacitação, em regra, são executadas pelas Escolas Judiciais Estaduais, as quais são credenciadas pela Enfam, cujos programas seguem as suas diretrizes pedagógicas, conforme Resolução n.º 02/2016 (Brasil, 2016). Possui um programa de formação de magistrados, cujas ações educacionais estruturam-se em três eixos curriculares teórico-práticos: a formação inicial, a formação continuada e a formação de formadores, conforme Resolução n.º 2/2016 (Brasil, 2016) e Resolução n.º 7/2019 (Brasil, 2019).

A formação inicial ocorre na etapa final do concurso público para ingresso na carreira da magistratura, conforme artigo 4º da Resolução nº 02/2016 (Brasil, 2016) e artigo 5º, inciso V, § 2º, da Resolução nº 75/2009, do CNJ (Brasil, 2009). O módulo de Direito Eleitoral somente é obrigatório, quando o curso de formação inicial ocorrer no último quadrimestre do ano anterior às eleições e no primeiro quadrimestre do ano eleitoral, nos termos do artigo 5º, § 1º-A, da Resolução nº 02/2016 (Brasil, 2016).

O segundo eixo, denominado “formação continuada”, tem como objetivo possibilitar o desenvolvimento de competências profissionais necessárias ao aprimoramento da qualidade da prestação jurisdicional. Nessa etapa de formação, tem-se como escopo principal o aperfeiçoamento com o fim de melhorar o desempenho das funções pelos magistrados, cujas ações são planejadas e desenvolvidas de acordo com as necessidades de cada órgão jurisdicional. Na formação continuada deverão ser abordados temas importantes para o exercício da função, como democracia, eleições, governo e direito eleitoral, conforme Anexo II da Resolução n.º 7/2017 (Brasil, 2017). Há uma preocupação de que o aprendizado seja efetivo, mediante a participação ativa dos magistrados-alunos.

De acordo com as diretrizes pedagógicas da Enfam, o terceiro eixo é o de formação de formadores, cujo objetivo principal é o desenvolvimento de competências de magistrados e servidores que atuam no planejamento e na execução de ações de formação e aperfeiçoamento dos juízes. O trabalho tem como finalidade promover um efeito multiplicador e, desse modo, ao realizar parcerias com as Escolas Judiciais dos Tribunais Estaduais, Federais e Eleitorais, possibilita a capacitação de magistrados e de servidores para que dominem os aspectos pedagógicos da formação profissional. Com esse trabalho, a Enfam busca desenvolver competências profissionais específicas para o exercício da docência e para a atuação no planejamento e na execução de ações de formação no contexto da magistratura. De acordo com os objetivos da Enfam, as competências a serem desenvolvidas no programa de formação de formadores distinguem-se em competências relativas ao conhecimento a ser ensinado e em competências relativas às habilidades para ensinar. Para tanto, a formação dos formadores instrumentaliza-se pela formação pedagógica, formação específica e formação técnica e instrumental.

De acordo com as diretrizes da Enfam, as competências e as habilidades para ensinar se referem ao domínio do conhecimento pedagógico, envolvendo a compreensão da aprendizagem do adulto, os fundamentos e as práticas de avaliação. Os princípios para a atuação do formador, tendo em vista o protagonismo do magistrado na sua formação são, assim, enunciados:

Para formar magistrados de novo tipo, são necessários novos processos educativos, que lhes permitam: transitar da situação de meros espectadores para protagonistas de sua própria formação, a partir de situações intencionais e sistematizadas de aprendizagem organizadas pelos docentes, que lhes permitam estabelecer relações com a ciência, com o conhecimento técnico, tecnológico e com a cultura de forma ativa, construtiva e criadora; substituir a certeza pela dúvida, a rigidez pela flexibilidade, a recepção passiva pela atividade permanente na elaboração de novas sínteses que possibilitem o exercício da magistratura com qualidade e rapidez de resposta; a passagem da aceitação da autoridade para a autonomia, na perspectiva da autonomia ética e estética, permitindo que o magistrado avance para além dos modelos preestabelecidos pela criação de novas possibilidades fundadas em sólidos argumentos, revendo normas e jurisprudência. (Enfam, 2017a, p. 11)

Percebe-se, assim, uma estruturação dos cursos de modo a possibilitar o desenvolvimento de habilidades para o exercício da função docente. Em consonância com o descrito no Projeto Pedagógico, vislumbra-se que a formação de formadores é vista como indispensável para o desenvolvimento das ações de formação inicial e continuada de magistrados.

Conforme descrito no Projeto de Desenvolvimento Institucional 2019-2023, a Enfam, em 2017, passou a denominar a capacitação de formadores como sendo Formação de Formadores e Desenvolvimento Docente, demonstrando preocupação com os aspectos didático-pedagógicos. Ao incluir a palavra “desenvolvimento”, emergem os sentidos de processo, de continuidade e de contextualidade (Brasil, 2019). Os formadores devem atuar no papel de provocador, facilitador e orientador da aprendizagem, com a necessidade de que no processo de ensino-aprendizagem haja troca de experiências e diálogos entre o formador e o aluno.

A formação de formadores, de acordo com o Projeto de Desenvolvimento Institucional da Enfam, é organizada em três níveis: O primeiro, denominado Nível I, cuida da Formação da Base Docente e busca “desenvolver competências básicas e comuns a todos os profissionais, relacionadas ao trabalho docente quanto ao planejamento e à realização de aulas/atividades e de práticas avaliativas no contexto de formação profissional da magistratura” (Brasil, 2019, p. 84). O Nível I está subdivido em três módulos: O Módulo 1 tem por objetivo apresentar os princípios relativos à atividade de ensino e de aprendizagem, relacionado à formação de magistrados; O Módulo 2 trabalha os elementos didáticos orientadores da prática docente; e o Módulo 3 apresenta as reflexões sobre a prática docente.

A oferta de cursos do Nível II depende das demandas dos formadores, a partir das quais a Enfam disponibiliza um catálogo de cursos. Visa ao aperfeiçoamento de competências específicas e busca o aprofundamento, a atualização e a especialização, de acordo com a atuação docente do profissional.

O Nível III refere-se a uma oportunidade de integração prática, cujo Módulo é opcional para as Escolas Judiciárias e, somente, obrigatório para os formadores da própria Enfam. O objetivo é o desenvolvimento do docente por meio da prática, realizada em um processo supervisionado, mediante a integração da teoria e da prática, em que o formador tem a chance de construir um conhecimento relativo à função docente através de um acompanhamento direto. Trata-se, portanto, de uma importante etapa de desenvolvimento do formador, com ênfase na prática laboral.

Essa organização dos cursos abrange aspectos essenciais à atividade docente, considerando-se os princípios propostos, as concepções de ensino e de aprendizagem, e questões mais técnicas, como a do planejamento de ensino, definição de objetivos, de estratégias de ensino e de avaliação.

Diretrizes Pedagógicas da Enfam


As Diretrizes Pedagógicas da Enfam constam na Resolução n.º 7/2017 (Brasil, 2017), a qual elenca os princípios epistemológicos e pedagógicos que devem reger as ações educativas. Conforme exposto no material didático preparado pela Enfam, denominado “Planejamento de ensino o contexto da magistratura – fundamentos e práticas pedagógicas” (Oliveira et al., 2015), tendo como conteudistas pedagogas e docentes, pesquisadoras da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), usado nos cursos de formação de formadores, as ações de capacitação dos magistrados são elaboradas, tendo em vista as teorias relativas ao ensino do adulto (ensinagem), como alguém que traz na bagagem conhecimentos específicos profissionais e experiências que devem ser valorizadas.

No que se refere às estratégias de ensino, as diretrizes da Enfam recomendam que a cada evento de formação/capacitação sejam aplicadas aquelas que mais favoreçam a aprendizagem, dentre elas: problematização, exposição dialogada, discussão em grupo, pesquisa, seminário, experimentação, debate, dramatização, estudo de caso, entre outras. A escolha da estratégia deve ser realizada com vistas a alcançar os objetivos educacionais/pedagógicos, tendo como ponto de partida as características dos respectivos alunos.

Conforme descreve o Projeto Pedagógico da Enfam, que consta na Resolução n.º 7/2019 (Brasil, 2019), a educação é tratada como uma prática social, cujo processo resulta das influências, estruturas e relações estabelecidas entre grupos sociais. Ao que se verifica, a Enfam adere ao conceito defendido por Libâneo (2012, p. 38), o qual afirma: “A educação é uma prática social, materializada numa atuação efetiva na formação e desenvolvimento de seres humanos, em condições socioculturais e institucionais concretas, implicando práticas e procedimentos peculiares, visando mudanças qualitativas na aprendizagem escolar e na personalidade dos alunos.”

A concepção de aprendizagem da Enfam é fundada nas teorias desenvolvidas por Lev Semyonovich Vigotski, em que o processo de aprendizagem é de natureza dialética, uma vez que as influências do meio sociocultural impulsionam o desenvolvimento individual:

De maneira articulada com a concepção educacional anteriormente explicitada, a concepção de aprendizagem defendida pela Escola Nacional em seus processos formativos desenvolvidos nas modalidades presencial e a distância é a sociointeracionista, formulada pelo educador Lev Semyonovich Vygotsky (1896-1934). Essa abordagem parte do pressuposto de que os homens só se tornam humanos por meio da interação, justificando o peso determinante do social na relação entre desenvolvimento e aprendizagem. (Enfam, 2019, p. 56)

Ainda no que tange à relação entre desenvolvimento e aprendizagem, a Enfam se fundamenta no conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), definida por Vigotski (1997), como sendo o caminho entre o desenvolvimento real do indivíduo e o nível de desenvolvimento que se pode obter, por meio das interações.

Tendo em vista a concepção de educação adotada, a Enfam estabelece os princípios pedagógicos que devem nortear as práticas educativas, a saber: a relação entre teoria e a prática, a relação entre parte e a totalidade, e a interdisciplinaridade (Brasil, 2017). Analisando-se esses princípios, notadamente em relação aos juízes eleitorais, verifica-se que eles, para ocuparem a referida função já demonstraram ter conhecimentos teóricos necessários para o ingresso na carreira. Desse modo, é imprescindível que todas as ações de formação tenham como pressuposto este conhecimento prévio, bem como trabalhe questões relacionadas ao dia a dia do magistrado, concretizando-se, assim, o princípio da relação entre a teoria e a prática, com apresentação de situações concretas a serem analisadas pelos magistrados-alunos. A correlação entre teoria e prática é um princípio que objetiva a facilitação do aprendizado, uma vez que parte do conhecimento preexistente, valorizando a bagagem de cada aluno.

Quanto à relação entre parte e totalidade, outro princípio, a Enfam (2017b) destaca que as ações de formação e capacitação de magistrados devem ser planejadas de modo que as atividades impulsionem o desenvolvimento do pensamento, partindo daquilo que lhe é mais próximo, ou seja, do conhecimento preexistente, e, sempre, com a utilização de estratégias de ensino adequadas, que possibilitem chegar ao conhecimento substancial, fruto de sínteses e da passagem do abstrato ao concreto, numa perspectiva dialética.

Da mesma forma é muito importante que os formadores tenham o cuidado de buscar integrar conhecimentos diversificados, trabalhando-se, assim, a interdisciplinaridade que “ocorre mediante a análise de casos concretos, pela vinculação de aspectos observáveis no caso com conhecimentos de diferentes áreas que se articulam para viabilizar sua compreensão” (Enfam, 2017b, p. 10). Trata-se da atividade de desenvolver uma análise dos casos concretos de modo a explorar as diversas áreas de conhecimento, propiciando ao magistrado uma visão mais ampliada das situações que lhe são apresentadas no exercício de sua função, possibilitando, assim, uma solução mais adequada a cada situação prática enfrentada.

Nas propostas de formação da Enfam, outro conceito nuclear e direcionador é o conceito de competência. O termo “competência” tem assumido um importante espaço de estudo e discussão, notadamente no meio acadêmico no que diz respeito ao processo de desenvolvimento e impulsionamento do conhecimento. Fleury e Fleury (2001) afirmam que, para Le Boterf, um importante teórico francês, a competência deve ser analisada com base em três pilares: o primeiro que se refere à pessoa, que tem como fundamento a biografia e a interação; o segundo que diz respeito à formação educacional da pessoa; e o terceiro ponto que está ligado à experiência profissional de cada um. Os citados autores destacam, ainda, que, para o mencionado teórico, a competência deve ser entendida como uma habilidade de agir de modo a ser reconhecido pelos demais, ou seja, ter aptidão para conseguir transferir conhecimentos, recursos e habilidades em determinada situação fática a que será submetido no cotidiano.

A Enfam traz explícita em suas diretrizes pedagógicas uma preocupação com a abordagem acerca da competência e estabelece que esta deve ser entendida como sendo uma aptidão para desempenhar determinadas funções, ainda que em situações, às vezes imprevistas, apresentando soluções eficazes, utilizando-se, para tanto, de conhecimentos adquiridos no decorrer de sua vida pessoal e profissional, conforme consta expressamente nas Diretrizes Pedagógicas (Enfam, 2017b). Verifica-se, portanto, que, para a Enfam, a competência refere-se à habilidade de encontrar soluções para as diversas situações a que os magistrados serão submetidos diariamente, utilizando-se de vários conhecimentos e habilidades necessárias para cada caso concreto.



A visão dos formadores sobre o processo de formação: análise do perfil e da formação curricular


O questionário inicialmente indaga sobre o cargo efetivo ocupado pelo formador, sendo que todos os participantes (17) são servidores do Judiciário, os quais são convocados para a função de formador a depender da demanda. Ao que se verifica no banco de formadores da Enfam, existem poucos registros de magistrados que atuam na citada função. No caso da presente pesquisa, entre os participantes, não foram registrados magistrados na função de formador de Juízes Eleitorais em Minas Gerais. Dentre as principais razões para esse fato, está a rotatividade dos juízes na função eleitoral, pois essa condição impõe aos magistrados um breve período nessa atuação.

Quanto à sua formação, a maioria (16) possui graduação em Direito, havendo apenas um com formação em Literaturas da Língua Portuguesa, não havendo registros de formação específica em Pedagogia. Era um resultado esperado, uma vez que os formadores são servidores do Judiciário. No que se refere aos cursos de Pós-Graduação, a maioria dos participantes possui curso de Especialização (14), havendo apenas um registro de Doutorado, e dois registros de Mestrado (na área do Direito), sendo que, dentre os especialistas, dois informaram que estão cursando Mestrado, dos quais, apenas um, na área de Educação.

Dando prosseguimento, o questionário busca informações se os respondentes possuem alguma formação específica na área da Educação. A maioria dos formadores não possui formação específica na área de Educação, o que foi afirmado por 11 deles. Dentre aqueles 06 que responderam positivamente, afirmaram que já participaram de cursos de formação de formadores promovidos pela Enfam.

O presente fato demonstra a realidade dos docentes, notadamente dos profissionais que atuam nos cursos de graduação e na capacitação dos profissionais do Direito em nosso país, em que ainda predomina uma formação técnica em detrimento da formação específica mais voltada para a atividade docente. Acerca do tema, muito valiosa a contribuição dos estudos de Veiga e Fernandes (2020), que demonstram incomodar-se com esse menosprezo em relação à formação didático-pedagógica dos docentes da educação superior. O que, de fato, é uma realidade, notadamente nos cursos de Direito, bem como nos cursos de formação profissional, de modo geral.

Um outro destaque é o fato de a maioria dos formadores (12) não atuar como docente em outros cursos ou instituições de ensino. A presente indagação fundamenta-se nos ensinamentos de Tardif (2018), no sentido de que uma das modalidades de formação profissional de docentes é exatamente por meio do próprio exercício da função de ensinar, o chamado saber experiencial, que decorre dos demais saberes e é adquirido por meio do exercício da profissão docente. Conclui-se, portanto, que a docência não é a atividade principal da maioria dos formadores e que as oportunidades de desenvolvimento do saber experiencial são limitadas, restringem-se aos cursos de formação da Enfam e à atuação nos próprios cursos de formadores.

Ainda no que se refere ao perfil dos formadores, foi indagado acerca da motivação para atuar na referida função. Nesta questão, os respondentes poderiam marcar até três opções que se enquadrassem para o seu caso, cujas respostas estão na Tabela 1.

Tabela 1

Motivações dos participantes para atuar como formador

Motivos

Frequência

Oportunidade de desenvolvimento pessoal e profissional

14

Contribuir com a formação dos magistrados/servidores visando aprimorar a prestação jurisdicional

11

Agregar saberes e valores

6

Gosto pelo ensinar

6

Remuneração

-

Motivação intrínseca relacionada à história de vida

3

Revisar conhecimentos

2

Identidade profissional no âmbito da docência

1

Prestígio

1

Ter projeção de destaque entre os pares

-

Fonte: elaborado pelos autores.

Analisando-se os dados (Tabela 1), as motivações mais recorrentes estão ligadas com o exercício da própria atividade profissional, uma vez que a maioria dos formadores de magistrados eleitorais têm como motivação, primeiramente, a oportunidade de desenvolvimento pessoal e profissional (14) e, em segundo lugar, o interesse em contribuir com a formação dos magistrados/servidores, visando aprimorar a prestação jurisdicional (11).

Percebe-se que, conquanto os formadores de magistrados eleitorais atuem diretamente com ações de capacitação, o que, portanto, envolve o processo ensino-aprendizagem, apenas seis afirmaram que o gosto pelo ensinar é um dos fatores motivadores para atuação na função. Do mesmo modo, a opção identidade profissional no âmbito da docência foi apontada por apenas um. Denota-se, portanto, que os fatores que motivam os formadores não estão ligados à prática docente, mas sim ao exercício da atividade jurisdicional, que pode lhes proporcionar desenvolvimento pessoal e profissional.

Na sequência, no intuito de obter informações acerca da formação dos formadores, indagou-se sobre a participação nos Cursos de Formação de Formadores (Gráfico 1):

Gráfico 1

Participação dos formadores nos Cursos de Formação de Formadores

Fonte: elaborado pelos autores.

A maioria dos formadores (09) já teve acesso ao nível I, que visa desenvolver competências básicas e comuns a todos os profissionais, relacionadas ao trabalho docente, enquanto 07 participaram do nível II, que se destina ao aperfeiçoamento de competências específicas. Trata-se de uma constatação importante, porque referidas ações certamente são primordiais para a atuação dos formadores, notadamente como forma de aprimorar o trabalho daqueles que já vêm desempenhando a função perante a Escola Judiciária Eleitoral de Minas Gerais. É necessário mencionar que a maioria desses formadores tem os cursos da Enfam como únicas ações de capacitação no que refere à preparação para atuar na profissão docente. Neste sentido, chama a atenção que 10 não participaram do Curso de Formação de Formadores nível II e, apenas, um participou do Curso de Formação de Formadores nível III, isto é, não completaram a formação pedagógica oferecida. Essa é uma lacuna, pois o Curso de Formação de Formadores de nível II é uma oportunidade de formação continuada para formadores, dado que o catálogo de cursos é proposto a partir das demandas levantadas pela Enfam. No que se refere ao Curso de Formação de Formadores de nível III, embora seja opcional, a sua proposta parece ser importante para o formador, dado que oportuniza a reflexão sobre a prática docente, por meio de uma atividade orientada e supervisionada.

A próxima indagação apresentada diz respeito à identificação das atividades que mais contribuem para a formação dos formadores, bem como para o desenvolvimento profissional docente.


Gráfico 2

Atividades que contribuem para a formação do formador, segundo os participantes

Fonte: elaborado pelos autores.

Percebe-se que os saberes oriundos da formação específica e da prática docente foram os mais destacados pelos respondentes. Dos 17 respondentes, 14 indicaram a participação em eventos da área do Direito Eleitoral ou da Educação, seguida da prática da docência (12), o que aponta para o desenvolvimento dos saberes experienciais e o mesmo número deles indica os cursos da Enfam. Em relação a esses, há uma leve preferência pelos cursos presenciais.

Dentre as respostas, importante destacar que a formação inicial da graduação foi marcada apenas duas vezes, o que, de certa forma, já era esperado, tendo em vista que a maioria dos formadores é graduada (16) em Direito, cujo curso superior não possui disciplinas obrigatórias voltadas para a prática docente e mesmo para o Direito Eleitoral. A experiência anterior como docente foi um item com pouca identificação pelos formadores, o que coaduna com o fato de que poucos formadores atuam como docentes em outras instituições de ensino, conforme já mencionado.

Ainda neste bloco, foi perguntado: “Nas Diretrizes Pedagógicas da Enfam, foram estabelecidos princípios pedagógicos que devem orientar a organização curricular e o trabalho, que é desenvolvido nas escolas de formação. Avalie a materialização desses princípios em seu trabalho de formador, marcando os itens pertinentes.” Essa questão tem relação com a proposta de formação, porém faz uma ligação com a atuação do formador, pois se baseia nos princípios pedagógicos da Enfam, mas questiona como eles se materializam na atuação do formador.


Gráfico 3

Materialização das diretrizes pedagógicas da Enfam na prática dos formadores, segundo os participantes

Fonte: elaborado pelos autores.

É possível depreender que os formadores buscam colocar em prática alguns dos princípios pedagógicos estabelecidos pela Enfam, com ênfase ao trabalho mediante a correlação entre a teoria e a prática (16), a opção por metodologias ativas (16), a aprendizagem construída por problematização (14), que é um tipo de metodologia ativa, e a interdicisplinaridade (13). Todavia, a articulação entre parte e totalidade não foi apontada como recorrente nas ações de capacitação realizadas pelos formadores.

Importante destacar que, de acordo com o Projeto pedagógico da Enfam, deve ser buscada uma aprendizagem significativa, em que a prática seja o ponto de partida para a seleção dos conteúdos. O formador deverá atuar de forma a utilizar técnicas de ensino que possibilitem articular a teoria e a prática, tais como problematização e estudo de casos, dentre outras, que podem ser colocadas no rol de metodologias que se pautam na colaboração, na problematização e na participação, chamadas de metodologias ativas. Entretanto, parece ser contraditório, 16 deles afirmarem que a relação teoria e prática está presente na sua prática docente, enquanto apenas seis assinalaram o movimento do pensamento a partir da prática laboral.

Desse modo, o fato de os formadores terem dado destaque ao uso de metodologias ativas e aprendizagem construída com base na problematização demonstra que a sua atuação está de acordo com as diretrizes da Enfam. Vislumbra-se, ainda, que estas respostas demonstram a importância dos cursos de formação de formadores da Enfam, os quais, certamente, fomentam o uso de estratégias de ensino adequadas ao desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem na educação de adultos, pois fazem parte dos seus princípios pedagógicos. Destaca-se que a “construção do conhecimento com base na mediação pedagógica” não foi elencada como uma prática comum entre os formadores. Talvez a questão da mediação pedagógica não seja algo que os formadores consigam visualizar em suas práticas. Entretanto, a questão mostra que há uma preocupação entre os formadores de que os cursos de capacitação sejam regrados por uso de métodos ativos, que envolvem a participação do magistrado-aluno e, notadamente, buscam dar protagonismo a ele na construção do saber. Ter o aluno como protagonista do processo é uma tendência que, contemporaneamente, está presente no discurso dos educadores e na maioria dos dispositivos legais da educação brasileira em todos os níveis.

Quanto à atuação didático-pedagógica, buscou-se mapear quais são os conhecimentos necessários para exercer a função de formador de juiz eleitoral, na opinião dos formadores. Dentre as nove opções, os respondentes poderiam assinalar até cinco que considerassem mais essenciais (Gráfico 4):

Gráfico 4

Conhecimentos necessários para exercer a função de formador na visão dos formadores

Fonte: elaborado pelos autores.

É possível perceber que o conhecimento relativo ao domínio da disciplina a ser ensinada se encontra em posição de destaque (16), que, junto ao conhecimento dos trabalhos a serem realizados no processo eleitoral (15), constituem o conhecimento específico do curso. É certo que o referido saber é imprescindível ao docente, notadamente, porque os formadores também deram destaque ao conhecimento relativo às práticas pedagógicas (15), as quais, certamente, são os instrumentos necessários para a concretização do processo de ensino-aprendizagem.

A importância dada ao conhecimento específico relativo à matéria a ser ensinada deve caminhar junto com saberes experienciais e do conhecimento pedagógico do conteúdo, os quais compõem conhecimentos necessários para o exercício da profissão docente, incluindo, contemporaneamente, outros saberes como o de uso das tecnologias. Nesse ponto, é valioso enfatizar que os formadores de magistrados eleitorais, embora não sejam da área pedagógica, valorizam esse conhecimento, certamente como consequência da formação pedagógica realizada pela Enfam.

Acerca do tema, Mizukami (2004), apoiada em Shulman (1986), salienta a importância do conhecimento pedagógico do conteúdo, que se refere, exatamente, ao saber como ensinar uma dada disciplina para um grupo determinado de alunos. Trata-se de um conhecimento que o professor vai aprimorando durante a sua prática profissional, por meio da sua experiência. Não se pode deixar de mencionar que o conhecimento experiencial da docência, apontado por poucos formadores (apenas 6), constitui-se, conforme já mencionado anteriormente neste trabalho, em uma importante forma de aquisição de conhecimentos por parte do docente, tratando-se de um saber que é adquirido por meio do próprio exercício da docência.

O conhecimento dos alunos e o conhecimento do currículo foram as alternativas menos assinaladas. Os respondentes tiveram que estabelecer prioridade, porém conhecer o aluno, principalmente num curso voltado para adultos, com experiências importantes a serem compartilhadas, é um tipo de conhecimento que não pode ser ignorado, assim como não deve ser, o do contexto social e político em que a atividade do magistrado-aluno será exercida.

No que se refere aos saberes inerentes aos formadores de magistrados, os conhecimentos ora mencionados são necessários e, conforme afirma Oliveira (2014, pp. 49-50):

Considerado aqui o docente-magistrado um profissional vinculado não só à área do Direito, mas, também à Educação, ele deve ser visto como sendo mais que um instrutor. Isso implica uma formação com a inserção dos conhecimentos provenientes da Pedagogia como uma área do conhecimento educacional que, com base em Saviani (2011), pode ser compreendida como “[...] uma teoria que se estrutura em função da ação, ou seja, é elaborada em razão de exigências práticas, interessada na execução da ação e nos seus resultados.” (p.7). Ou seja, o conhecimento pedagógico denota, metodológica e teoricamente, a postura do educador atuar na realização da ação educativa. Daí a relevância do mencionado saber.

Vislumbra-se, portanto, um destaque para os conhecimentos pedagógicos inerentes ao docente, os quais devem estar presentes para aqueles que atuam como formadores de magistrados, pois eles também se vinculam ao campo da Educação e da docência. Acrescentam-se a esses conhecimentos, o tecnológico, que ganhou importância neste início de século XXI, sobretudo no período da pandemia da covid-19 e do consequente isolamento social.

Em continuidade, os formadores foram indagados acerca de quais estratégias de ensino são utilizadas nas ações de capacitação. (Gráfico 5)


Gráfico 5

Estratégias de ensino utilizadas pelos formadores na capacitação de magistrados

Fonte: elaborado pelos autores.

A problematização (17) e o estudo de caso (16) são as estratégias utilizadas por quase todos os formadores. Estão plenamente de acordo com a concepção adotada pela Enfam, uma vez que são técnicas que valorizam o conhecimento prévio e a experiência do magistrado-aluno, notadamente, quando têm como ponto de partida o contexto de trabalho desses magistrados, buscando a articulação entre teoria e prática, um dos seus princípios pedagógicos. Ainda, têm uma presença forte a aula expositiva (12), a discussão em grupo (13) e o debate (11). Ainda que essas sejam estratégias mais tradicionais, continuam a ter o seu espaço nos momentos apropriados da atividade de mediação e o seu uso depende das finalidades com que são utilizadas. Portanto, não podem ser consideradas a priori “boas” ou “más”, “adequadas” ou “não adequadas”, embora haja uma indicação explícita de metodologias ativas nas Diretrizes Curriculares e nos projetos pedagógicos dos cursos.

Refletindo acerca das respostas, percebe-se que prepondera a utilização de estratégias de metodologias ativas, em que os magistrados-alunos têm uma maior oportunidade de expor suas experiências e adquirir novas, o que está de acordo com o planejamento pedagógico da Enfam (2019) e com as tendências pedagógico dos tempos atuais.

A formação na visão dos magistrados


De modo semelhante ao perguntado aos formadores, em relação à materialização dos princípios pedagógicos da Enfam, foi feita uma questão aos magistrados em que eles deveriam avaliar, numa escala de 1 a 5, a concretização desses princípios nos cursos de capacitação dos quais já havia participado. Para a análise, foi calculada a média aritmética ponderada de cada item, conforme se pode ver na Tabela 2.

Tabela 2

Concretização dos princípios pedagógicos na visão dos juízes eleitorais

Quesito apresentado

Frequências*

Média

1

2

3

4

5

Relação teoria e prática

1

1

3

4

1

3,3

Movimento do pensamento a partir da prática laboral

1

0

3

3

1

3,37

Interdisciplinaridade

1

2

4

0

1

2,75

Aprendizagem construída com base na problematização

0

1

4

2

1

3,37

Construção do conhecimento com base na mediação pedagógica

2

1

3

1

1

2,2

Metodologias ativas

0

3

2

1

2

3,25

Articulação entre parte e totalidade

0

2

3

1

2

3,37

Observação: O número de respondentes não foi o mesmo para todos os itens.

Fonte: dados do questionário aplicado aos juízes eleitorais.

Percebe-se que, na visão dos magistrados, a concretização dos princípios pedagógicos ainda é incipiente, pois em nenhum deles, observou-se média igual ou superior a 4, numa escala de 1 a 5. Essas variaram de 2,2 a 3,37. Os valores mais baixos ocorreram em relação à “construção do conhecimento com base na mediação pedagógica”, em que a média ponderada foi 2,2 e no que diz respeito à interdisciplinaridade, em que a média ponderada das respostas foi 2,75. Na avaliação dos demais princípios, a média ponderada ficou entre 3,25 e 3,37, notadamente em relação à “aprendizagem construída com base na problematização”, “na articulação entre parte e totalidade” e no “movimento do pensamento a partir da prática laboral”.

Conclui-se que, na visão dos juízes eleitorais, ainda será necessário um olhar mais atento no que se refere à concretização da interdisciplinaridade e da mediação pedagógica. Mas percebe-se que, pelo entendimento dos magistrados, os demais princípios pedagógicos (relação entre teoria e prática, aprendizagem construída com base na problematização, aprendizagem a partir da prática laboral) estão satisfatoriamente sendo observados pelos formadores, embora ainda não atinjam níveis mais elevados, tanto na elaboração quanto no desenvolvimento das ações de capacitação.

Também foi perguntado aos juízes eleitorais acerca dos conhecimentos necessários para exercer a função de formador. As respostas encontram-se no Gráfico 6.


Gráfico 6

Conhecimentos necessários para exercer a função de formador na visão dos juízes eleitorais.

Fonte: elaborado pelos autores.

Neste caso, as respostas dos onze participantes da pesquisa (Gráfico 6) equivalem na mesma proporção às repostas dos 17 formadores acima referenciadas, com destaque para o “conhecimento da matéria a ser ensinada” (11), o “conhecimento dos trabalhos a serem realizados no processo eleitoral” (9) e o “conhecimento relativo às práticas pedagógicas” (8). Destaca-se que, do mesmo modo que os formadores, para os magistrados, o conhecimento dos alunos (não marcado pelos respondentes), o conhecimento do currículo (2) e o conhecimento experiencial da docência (4) também são menos importantes para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem.

Também os magistrados eleitorais foram questionados sobre as estratégias de ensino mais utilizadas nos cursos de formação, com a opção de o respondente avaliar, numa escala de 1 a 5, a frequência com que foram utilizadas. Considerando o formato da pergunta, as respostas foram analisadas por meio do cálculo da média aritmética ponderada, conforme demonstra a Tabela 3.


Tabela 3

Estratégias de ensino utilizadas pelos formadores na capacitação

Quesito apresentado

Frequências

Média

1

2

3

4

5

Problematização

0

1

3

1

4

3,88

Exposição dialogada

1

2

2

1

3

3,33

Discussão em grupo

0

2

2

2

3

3,33

Pesquisa bibliográfica

1

4

3

1

0

2,44

Pesquisa empírica

2

1

3

2

0

3,12

Seminário

1

2

4

1

1

2,88

Experimentação

2

1

2

3

0

2,75

Debate

1

3

0

3

2

3,22

Dramatização

2

4

1

0

1

2,25

Estudo de caso

0

1

3

3

2

3,66

Simulações

1

2

1

5

0

3,22

Jogos

6

1

1

0

0

1,37

Visitas

6

2

0

0

0

1,25

Inserção do aluno em práticas laborais

0

5

2

1

0

2,5

Fonte: Elaborada pelos autores.

Pode-se perceber que a problematização, o estudo de caso e a discussão em grupo foram as estratégias mais apontadas pelos juízes, o que corrobora as informações obtidas a partir das respostas dos formadores. Trata-se de metodologias ativas que são adequadas aos participantes.

Considerações finais


Partindo do pressuposto de que a atividade dos formadores de juízes eleitorais é uma prática docente, que requer formação, saberes e competências específicas, esta pesquisa de abordagem qualitativa teve como objetivo geral compreender a formação e a atuação didático-pedagógica dos formadores de juízes eleitorais, a partir das percepções e significados atribuídos pelos formadores e pelos juízes e dos documentos normativos e institucionais da Enfam.

No que tange à formação de magistrados, pode-se concluir que a Enfam tem desempenhado um importante papel, atuando desde a formação inicial dos magistrados, bem como na formação de formadores de juízes eleitorais, o que dá suporte aos magistrados para o exercício da função eleitoral. Vislumbra-se, claramente, uma preocupação com os aspectos pedagógicos dos cursos de formação de magistrados, nos documentos analisados, como nas Diretrizes Pedagógicas da Enfam (2017a) e no Projeto de Desenvolvimento institucional 2019-2023 (Enfam, 2019).

Em síntese, de acordo com os dados apurados, resta claro que, apesar de a maioria dos formadores e dos juízes eleitorais não ter a profissão docente como atividade principal e não ter formação pedagógica específica, estes percebem a importância da formação didático-pedagógica e da concretização das diretrizes pedagógicas estabelecidas pela Enfam, para que os cursos de formação e capacitação de magistrados realmente contribuam para o exercício profissional dos magistrados.

No que tange à visão dos magistrados eleitorais, verifica-se que veem as ações de capacitação como importantes e indispensáveis para o exercício da função. Inclusive para a maioria dos respondentes, os cursos de formação inicial e continuada fornecem subsídios necessários para o exercício da função. Todavia, apesar de reconhecerem a utilização de metodologias ativas, ainda pugnam para que nos cursos de formação inicial e continuada haja uma maior preocupação com a concretização do princípio pedagógico da interdisciplinaridade, bem como pela utilização da mediação pedagógica, que estão claramente apresentados nos documentos da Enfam.

Concluindo, pode-se afirmar que a Enfam se preocupa em estabelecer diretrizes e orientações didático-pedagógicas para seus cursos, alinhadas com tendências contemporâneas de formação e de práticas pedagógicas, como o uso de metodologias ativas e o princípio da interdisciplinaridade, ainda que os conteúdos específicos sejam os conhecimentos mais valorizados pelos formadores e pelos juízes eleitorais participantes. Essa visão precisa ser ampliada, dado que a atividade didática está em função de uma apropriação mais eficaz e adequada desses conhecimentos específicos para uma atuação dos juízes que visa a qualidade da justiça.

Referências


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Brasil. (2016). Resolução n.º 2/2016 (Dispõe sobre os programas para a formação e o aperfeiçoamento de magistrados e regulamenta os cursos oficiais para o ingresso, a formação inicial e o aperfeiçoamento de magistrados e de formadores). Superior Tribunal de Justiça (STJ). https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/102269

Brasil. (2017). Resolução n.º 7/2017 (Diretrizes Pedagógicas da Enfam). Superior Tribunal de Justiça (STJ). https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/116264

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Brasil. (2019). Resolução n. 7 de 8 de agosto de 2019 (Aprova o Projeto Pedagógico e o Plano de Desenvolvimento Institucional 2019-2023 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira). Superior Tribunal de Justiça (STJ). https://bdjur.stj.jus.br/jspui/handle/2011/133159

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Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam). (2019). Projeto de Desenvolvimento institucional 2019-2023 (Diretrizes gerais para realizar e orientar a formação e o aperfeiçoamento de magistrados -Justiça Federal e Estadual). https://www.Enfam.jus.br/wp-content/uploads/2019/10/Projeto_pedagogico_institucional.pdf

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Vigotski, L. S. (1997). Obras Escogidas. T. II (pp. 181-285). Visor.


Sobre os autores


Alcineia Suely de Sales


Universidade de Uberaba, Uberaba, MG, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-3394-5970


Mestre em Educação pela Universidade de Uberaba (2022). Analista do Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais. Tutora e conteudista nos cursos de formação e aperfeiçoamento de servidores e magistrados eleitorais realizados pela Escola Judiciária Eleitoral de Minas Gerais. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Instrução, Desenvolvimento e Educação (GEPIDE). E-mail: alcineiasuely@gmail.com


Marilene Ribeiro Resende


Universidade de Uberaba, Uberaba, MG, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-6740-1787


Doutora em Educação Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2007). Professora titular da Universidade de Uberaba. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Instrução, Desenvolvimento e Educação (GEPIDE). E-mail: marilene.resende@uniube.br


Contribuição na elaboração do texto: autora 1 – preparação e aplicação dos instrumentos de coleta de dados (questionários), análise dos dados, elaboração e desenvolvimento do texto; autora 2 – participação na análise dos dados, revisão e consolidação do manuscrito.


Resumen


Este artículo se guía por la pregunta: ¿Cuál es la visión de los formadores de jueces electorales sobre su formación para la docencia y su desempeño, y la visión de los jueces electorales, que pasaron por el proceso de formación propuesto por la Enfam? Se aplicó un cuestionario a los formadores de magistrados electorales de Minas Gerais, diecisiete, y un cuestionario a once jueces electorales. En resumen, aunque la mayoría de los formadores no tienen formación pedagógica, se dan cuenta de la importancia de los aspectos didáctico-pedagógicos, por lo que los cursos de formación de magistrados contribuyen a la práctica profesional de estos jueces.


Palabras clave: Formación de formadores. Enseñanza. Enfam. Formación de jueces.



Abstract


This article is guided by the question: What is the view of trainers of electoral judges on their training for teaching and their performance, and the view of electoral judges, who went through the training process proposed by the Enfam? A questionnaire was applied to the current trainers of electoral magistrates in Minas Gerais, in a total of seventeen, and a questionnaire to eleven electoral judges. In summary, although most trainers do not have specific pedagogical training, perceive the importance of didactic-pedagogical aspects, so that training courses for magistrates contribute to the exercise professional of these judges.


Keywords: Formation of trainers. Teaching. Enfam. Training of judges.



Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896

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Referência completa (APA): Sales, A. S. de, & Resende, M. R. (2023). A formação dos juízes eleitorais na visão dos formadores e dos magistrados. Linhas Críticas, 29, e47147. https://doi.org/10.26512/lc29202347147


Referência completa (ABNT): SALES, A. S. de; RESENDE, M. R. A formação dos juízes eleitorais na visão dos formadores e dos magistrados. Linhas Críticas, 29, e47147, 2023. DOI https://doi.org/10.26512/lc29202347147


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