Dossiê | Pesquisa narrativa no fazer ordinário da docência: múltiplas perspectivas

Biografização/heterobiografização: elaboração memorialística de uma personagem auto(hetero)biográfica em formação docente

Biografización/heterobiografización: elaboración memorial de un personaje auto(hetero)biográfico en la formación docente

Biographization/heterobiographisation: memorial elaboration of an auto(hetero)biographical character in teacher training

Maria Helena Menna Barreto Abrahão


Destaques


Ricoeur, Delory-Momberger e Marinas iluminam um sentido outro para a formação docente.


Palavra dada e a escuta sensível jossoniana remetem à auto(hetero)biografização.


A personagem auto(hetero)biográfica tem reconhecimento mútuo (atestação/ascrição).


Resumo


O artigo opera, dentre outros, com conceitos de biografização e heterobiografização ativos mediante processos de formação docente em Seminário de Pesquisa-Formação, vivenciados por meio da elaboração memorialística de uma personagem auto(hetero)biográfica, conceito, este, que denomino como referente ao sujeito do processo narrativo o qual exige reflexão do narrador visto que a intriga narrativa não ocorre, de parte deste, sem a intencionalidade de narrar de si para si e para o outro – ouvinte ou leitor – movimento instituinte de identidade narrativa exigente da reflexividade que se dá em alteridade, construída no seio de um circuito narrativo voltado à formação pessoal/profissional de professores.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Pesquisa narrativa. Memorial auto(hetero)biográfico. Formação de educadores.


Recebido: 21.03.2023

Aceito: 11.07.2023

Publicado: 02.08.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347664

É a narrativa que dá uma história à nossa vida: nós não fazemos a narrativa da nossa vida porque temos uma história; temos uma história porque fazemos a narrativa da nossa vida. (Delory-Momberger, 2014, p. 97)

A pessoa, compreendida como personagem de narrativa, não é uma entidade distinta de suas “experiências”. Bem ao contrário: ela divide o regime da própria identidade dinâmica com a história relatada. A narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem. Essa [a] dialética de concordância discordante do personagem […]; é preciso agora inscrever [o personagem] na dialética da mesmidade e da ipseidade. (Ricoeur, 2014, p. 176)

Biografização – (pré)configuração da narrativa


A biografização1, entendida como processo narrativo em interface entre o individual e o social (Delory-Momberger, 2019), exige reflexão do narrador em razão de que a intriga narrativa que fala de vivências não ocorre, de parte deste, sem a intencionalidade de narrar de si para si e para o outro – ouvinte ou leitor – movimento exigente de reflexividade2 que se dá em alteridade, em nosso estudo no seio de um circuito narrativo que Marinas (2007, p. 61) denomina de “circuito da palavra e da experiência”. O sujeito da narração ao construir a intriga narrativa se diferencia em termos formativos do que vivenciava antes desse processo, em virtude de que ao narrar reflexivamente vivências pessoais/socioculturais as (re)constrói como experiências, o que se consubstancia em processo formador, assim como Josso (2016) também o entende.

A biografização é abordada por Delory-Momberger (2008, p. 57) ao tratar de uma hermenêutica da narrativa (auto)biográfica, a qual pode se efetivar por meio da constituição de uma “inteligibilidade biográfica, ou seja, sobre a maneira como o homem aprende sua própria vida recontando-a”, experienciando-a de modo a construir “um todo unitário e estruturado com o qual relaciona os momentos de sua existência” (Delory-Momberger, 2008, pp. 57-58, grifo da autora).

Esse processo, conceituado por Ricoeur (2014) como síntese do heterogêneo realizada mediante uma trama narrativa urdida pelo sentido dado reflexivamente a elementos concordantes/discordantes do vivenciado e havidos na memória do narrador, faz pensar em uma unicidade autobiográfica, não linear, no entanto, sempre pronta a novas significações e recomposições da narratividade (Abrahão,2022a). Delory-Momberger (2008, p. 58, grifo da autora) atenta para o fato de que esse processo de biografização instaura o que denomina de experiência biográfica que, sendo cumulativa, “é igualmente o lugar de experiência e de produção da identidade do eu: o eu que se experimenta como idêntico a ele mesmo na medida em que se reconhece como instância única de reinterpretação das figuras sucessivas da vida”.

Ricoeur considera a identidade pessoal como mesmidade, fruto da dialética entre identidade-idem e identidade-ipse, referente à permanência no tempo – mas não estáticos – de traços pessoais físicos, de gostos, de gestos, dentre outros, bem como de características de caráter, para além, portanto, da identidade do eu, desde que, para Ricoeur (2014), falar do eu é diferente do que falar do si3, sujeito da categoria gramatical reflexiva si (si mesmo).

Mediante uma dialética complementar à anterior – a do si constituído em alteridadeRicoeur (2014) nos oferece o conceito de identidade narrativa: aquela que se constitui narrativamente entre identidade-ipse e o outro que não o si. Trata-se, nesse caso, de o narrador compreender-se ao compreender o outro (quem o escuta, quem o lê) como diferente de si, o que propicia, em meu entender, a construção de uma identidade narrativa evolutiva própria ao sujeito participante do circuito narrativo mariniano, com o qual também venho operando (Abrahão, 2016; 2018).

É, portanto, esse si que se reconhece diverso do outro, mediante a alteridade que:

Não se acrescenta de fora à ipseidade, como para prevenir daí a deriva solipsista, mas que ela pertence ao conteúdo de sentido e à constituição ontológica da ipseidade, esse traço distingue fortemente essa […] dialética daquela da ipseidade e da mesmidade, cujo caráter disjuntivo permanecerá dominante. (Ricoeur, 2014, p. 371)4

Nessa esteira, chegamos à noção de personagem construída por Ricoeur considerando a teoria da ação, já que em narração a “intriga é precisamente a configuração que faz uma composição dos acontecimentos e dos personagens” (Ricoeur, 2014, p. 265). Melhor, se lido na fonte:

É personagem aquele que faz a ação narrativa. A categoria personagem é, portanto, ela, também, uma categoria narrativa, e seu papel na narração depende da própria inteligência narrativa, que a intriga a si mesma. […]. A tese aqui sustentada será que a identidade do personagem compreende-se por transferência para ele da operação de intriga primeiramente aplicada à ação relatada: o personagem, diremos, é ele próprio intriga. (Ricoeur, 2014, pp. 170-171, grifo do autor)

Por qual razão? Em razão de que, como posto em epígrafe:

[…] a pessoa, compreendida como personagem de narrativa, não é uma entidade distinta de suas “experiências”. Bem ao contrário: ela divide o regime da própria identidade dinâmica com a história relatada. A narrativa constrói a identidade do personagem, que podemos chamar sua identidade narrativa, construindo a da história relatada. É a identidade da história que faz a identidade do personagem. Essa [a] dialética de concordância discordante do personagem […]; é preciso agora inscrever [o personagem] na dialética da mesmidade e da ipseidade. (Ricoeur, 2014, p. 176, grifo do autor)

Como inscrever a personagem na qualidade de agente da ação nessa dialética, ou melhor, como inscrevê-la na dialética do si em alteridade? Ricoeur (2014, p. 35, grifos do autor) nos dá a resposta mediante o constructo atestação:

Fé é também fiança. […] a atestação é fundamentalmente atestação de si. Essa confiança será sucessivamente confiança no poder de dizer, no poder de fazer, no poder de se reconhecer personagem de narrativa […]. Essa segurança continua a ser o último recurso contra toda a suspeita; mesmo que ela seja sempre de algum modo recebida de um outro, ela permanece atestação de si. Essa atestação de si que em todos os níveis – linguístico, práxico, narrativo, prescritivo – impedirá a pergunta quem? de se deixar substituir pela pergunta o que? ou a pergunta por que? Inversamente, no vazio depressivo da aporia, só a persistência da pergunta quem? de todo o modo expressa pela falta de resposta, revelar-se-á como o refúgio invencível da atestação.

Esse movimento (troca da pergunta quem pelas questões que, por que), “retira” a ação do sujeito entendendo-a como ação do mundo. É ultrapassando essa aporia da ação sem agente que se reconhece, pela atestação de si ou pela ascrição da ação ao sujeito, a personagem da narrativa. Reconhecer-se ou ser reconhecido personagem da narrativa nos leva à dialética, posta por Ricoeur, entre reconhecimento pela atestação de si e a alteridade, isto é, a ascrição, imputação da ação ao sujeito por reconhecimento do outro ou por reconhecimento mútuo. Entendo que, em Ricoeur, as afirmações eu reconheço e eu sou reconhecido não obnubilam a identidade narrativa desde que as “conquistas do reconhecimento-atestação de si não podem ser perdidas, ainda menos abolidas pela passagem para o estágio do reconhecimento mútuo” (Ricoeur, 2007, p. 262).

De outra parte, ao narrar de si a personagem traz à narrativa vivências que deseja contar e aquelas que deseja obnubilar, procurando construir a intriga narrativa – o enredo lógico já mencionado – que lhes dê sentido. A intriga narrativa, seja visando à compreensão do pesquisador, seja com a atenção voltada à leitura dos pares ou, ainda, de parentes e amigos, ou, mesmo, do próprio narrador, labora em tempoespaço humano. A dimensão conceitual “tempo humano” é aprendida em Ricoeur (2010, p. 85) em texto que esclarece existir “entre a atividade de contar uma história e o carácter temporal da experiência humana uma correlação que não é puramente acidental”, de modo que “o tempo se torna tempo humano na medida em que é articulado de um modo narrativo, e que a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma condição da existência temporal” (Ricoeur, 2010, p. 85). O tempo humano, portanto, apresenta-se em Ricoeur com característica própria, em especial dado o entendimento de que o caráter temporal pessoal/sociocultural da experiência do narrador articula-se pela narrativa, ao clarificar a aporia tempo cronológico/tempo fenomenológico. Complementarmente ao tempo humano, pode-se entender a dimensão espaço humano como em (Abrahão, 2022b, p. 15):

[...] conhecer a própria vida vivida inscreve-se em um espaço humano que ultrapassa a contradição espaço do mundo – espaço geométrico – e espaço vivenciado – ordenado descritivamente, tornando-o um outro espaço: o espaço experienciado pela reflexibilidade, espaço narrativo, subjetivado e pleno de significado.

Essa noção de terceiro tempoespaço pode ser melhor clarificada em Ricoeur (2018, p. 159):

Entre o tempo “narrado” e o tempo “construído”, as analogias e as interferências abundam. Nem um nem outro se reduzem a frações do tempo universal e do espaço dos geômetras. Mas eles tampouco lhes opõem uma alternativa franca. O ato de configuração intervém de uma e outra parte no ponto de ruptura e de sutura dos dois níveis de apreensão: o espaço construído é também espaço geométrico, mensurável e calculável; sua qualificação como lugar de vida superpõe-se e se entremeia a suas propriedades geométricas da mesma forma como o tempo narrado tece em conjunto o tempo cósmico e o tempo fenomenológico.

A vida narrada integra, portanto, um complexo sistema espaciotemporal humano, como dimensão conceitual desse sistema.

Heterobiografização – configuração narrativa


Até o presente momento, abordei a construção da personagem de parte do narrador que se constrói mediante processo de biografização em um tempoespaço humano. De outra parte, há o ouvinte, nesse caso, o pesquisador-formador, e, ainda, possivelmente, o leitor na outra ponta, que também operam inseridos em um sistema espaciotemporal. Ouvinte e leitor, face à biografização empreendida pela pessoa que narra a própria vida, ao ouvi-la – ou lê-la – reflexivamente, também se modificam e, da mesma forma, de acordo com referenciais próprios, tecem uma construção idiossincrática da personagem, processo, este, também de aprendizagem formadora para ambos: configuração da narrativa. À essa aprendizagem de parte do ouvinte e do leitor, Delory-Momberger denomina de heterobiografização, conceito por ela cunhado com o significado de “processo de apropriação, de tornar próprias as experiências dos outros” (Delory-Momberger, 2014, p. 156), mediante um “trabalho de escuta ou de leitura de textos biográficos e dos efeitos de compreensão e de formação de si” (Delory-Momberger, 2019, p. 89).

Neste artigo, portanto, sempre que menciono as narrativas construídas mediante processos formativos de biografização refiro-me às narrativas de parte do narrador; sempre que me refiro à heterobiografização aludo à minha própria aprendizagem – também eminentemente formativa – mediante pesquisa com memoriais e narrativas fruto desse processo, tendo sempre presente o entendimento de que mediante o processo de heterobiografização o pesquisador-formador (e também o leitor) tecerá as próprias narrativas, nem que seja mentalmente, fruto das compreensões da escuta atenta e do lido frente a referenciais que lhe são próprios. Isto porque a experiência resultante do processo reflexivo de biografização e de heterobiografização é cumulativa, urdida pelo sentido dado reflexivamente a elementos concordantes/discordantes do vivenciado e havidos na memória dos sujeitos da narratividade, ou seja, do narrador, do pesquisador-formador e do leitor. Anterior a uma narrativa escrita ou oral, certamente há uma narrativa gestada na mente desses sujeitos que (re)configuram as narrativas ao longo da experiência narrativa e/ou leitora.

Auto(hetero)biografização – (re)configuração narrativa


Entendo que no processo vivenciado em circuito narrativo, tanto no que respeita à biografização, quanto no que se refere à heterobiografização, constroem-se narrativas auto(hetero)biográficas, as quais são resultantes dos fatos narrados reflexivamente pela personagem e recepcionados com escuta atenta pelos ouvintes – em especial o pesquisador-formador e leitores da palavra dada5 – narrativas, essas, reconfiguradas em novas e múltiplas possibilidades interpretativas consoante perspectivas teórico referenciais urdidas em diferenciados espaçostempos vivenciais de cada um. As narrativas auto(hetero)biográficas constituem-se, portanto, de atos de fala da personagem – aquela que exerce a ação de narrar a própria vida – no seio do processo de enunciação e escuta que Ricoeur (2014) prefere significar, convém lembrar, como atos de discurso postos em intriga os quais operam com elementos interpretativos, tanto de parte de quem os enuncia reflexivamente, como de parte de quem os escuta ou lê com atenção e reflexão.

A narrativa auto(hetero)biográfica tecida em intriga resulta, assim, de uma totalidade ressignificada de atos de discurso, concordantes/discordantes, clarificados mediante processos reflexivos idiossincráticos do narrador, do ouvinte, do leitor em movimentos interpretativos que operam sínteses do heterogêneo dos fatos narrados. Ricoeur (2014) refere-se a esse movimento que articula narrador, ouvinte e leitor, mediante três dimensões da narratividade: Mimese I, entendida como prefiguração, momento de pré-compreensão do mundo posto e da ação narrativa da personagem; Mimese II, posta como configuração da ação, momento interpretativo da narrativa; Mimese III, afeta à reconfiguração da ação narrativa, momento da reflexão do narrado que se desdobra em novas configurações e reconfigurações narrativas, possibilitadas por diversas e diversificadas leituras em processos auto(hetero)biográficos de fala/escuta/interpretação/compreensão. A esse Círculo Hermenêutico concorrem, como aludido, narrador, ouvinte e leitor com diferenciadas interpretações do narrado, mediante significações e ressignificações construtivas da personagem auto(hetero)biográfica porque construída fruto de diferenciadas mimesis.

Os seminários de Pesquisa-Formação que vimos desenvolvendo têm se consubstanciado como um locus constituinte de personagens auto(hetero)biográficas, razão pela qual cabe, neste momento, lembrar um exemplar dessa teoria-prática que vimos elaborando a respeito. Antes, porém, cabe trazer ao texto alguns apontamentos a respeito do Seminário de Pesquisa-Formação.

Os Seminários de Pesquisa-Formação


Em relação às narrativas auto(hetero)biográficas que se dão mediante pesquisa no âmbito universitário – foco de estudos que venho realizando – as entendo como elementos construtores de identidades narrativas (re)construídas em espaçostempos de Pesquisa-Formação vivenciadas como processo formativo para o sujeito narrador que, ao narrar-se reflexivamente, se constrói como a personagem da história da própria vida. Isso porque, como já referido, é mediante a tecitura em intriga da narrativa que se produz, segundo Ricoeur (2014), uma história – a história da personagem. Mas, não só. Esse processo é também formativo para o pesquisador-formador e para os pares integrantes de seminários dessa natureza. É pertinente esclarecer que a referida formação docente, corolário desse processo, antes mesmo de ser uma resultante é um objetivo posto e trabalhado no coletivo do seminário.

Tenho trabalhado, desde 2006, com Seminários de Pesquisa-Formação, realizados especialmente à luz de Josso (2002), os quais se desenvolvem durante um semestre letivo, na universidade, tanto com alunos da Graduação, em curso de Pedagogia, como com alunos de Mestrado e Doutorado em Educação. Na Graduação, objeto deste texto6, tenho desenvolvido esse seminário no primeiro semestre do curso. Costumo deixar a estrutura do Memorial de Formação, que representa o “produto” do seminário, cuja construção “completa” solicito aos alunos ao final do semestre, à vontade dos estudantes no que respeita à forma e ao suporte físico dessa peça. Solicito, somente, que este seja resultante de um processo intencionalmente reflexivo, já que desenvolvido no âmbito do Seminário de Pesquisa-Formação, portanto experiencial-formativo, que reflita vivências durante os anos de estudante anteriores à chegada ao curso, podendo corresponder aos anos dos primeiros estudos até à fase atual. Por esta razão, tenho recebido memoriais sempre reflexivos, apresentados em diferentes formatos mediante diversificados suportes. Por exemplo: encadernados contendo conjunto de fotos comentadas e/ou em formato de poesias cujos versos são ricos em informações de relevantes experiências de vida. Há um Memorial que foi apresentado no jeito de um Teatro de Sombras, que, posteriormente, transformou-se, com os necessários e apropriados requisitos, primeiramente em um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, posteriormente, em uma belíssima Dissertação (Hossein, 2013). Há um Memorial escrito em formato de uma história em quadrinhos, o qual trarei em colação, mais adiante neste texto.

Para o esforço de compreensão dos dados e informações postos nos memoriais adoto, além do círculo hermenêutico ricoeuriano, anteriormente citado neste artigo, metodologia denominada por Marinas (2007) de compreensão cênica, segundo a concepção em que as categorias de sujeitos são entendidas como espaçotempo de enunciação, em que os elementos narrativos pertinentes vão se desenhando em cenas na medida da relação das narrativas com seus contextos. Essa assertiva é explicitada pelo autor, como segue: “A compreensão cênica implica entender o relato não como uma história linear, acumulativa, mas como um repertório de cenas” (Marinas, 2007, p. 118). Continuando, Marinas (2007, p. 118) procura clarificar o que denomina de modelo da compreensão cênica:

Dentre essas [cenas], a primeira (E1) é a que reúne [no processo de] escuta, o narrador e o entrevistador. Nela ocorrem fenômenos que remetem tanto à lógica do íntimo (transferência) como a das condições sociais e discursivas (reprodução ou ruptura do discurso dominante e inovação). As cenas 2 são as que formam parte da vida cotidiana de quem narra, suas posições como emissor e receptor atravessam de volta à cena 1 na medida em que nela se atualizam. Nesse jogo entre as cenas 1 e 2 dá-se o possível passo ou emergência das cenas reprimidas ou esquecidas.

Segundo leitura dessa metodologia, entendo as diferentes cenas do enunciado/escutado como integrantes e integradoras de um sistema espaciotemporal “modelador” do processo de narração, isto é, do desenvolvimento do circuito narrativo que envolve narrador, ouvinte (pesquisador-formador) e leitor pela palavra dada e consequente escuta ou leitura atenta desses sujeitos da narratividade (auto)biográfica, em modulações narrativas, pré-configuradas, configuradas, reconfiguradas, havidas, em especial, no momento da enunciação e em momentos de leituras das narrativas postas em texto. Essas diferentes mimesis são “alimentadas” pelo esforço mnemônico do narrador que busca sentido em cenas concordantes/discordantes de vivências cotidianas para a construção da narrativa autobiográfica.

Entendo que o momento da enunciação é crucial para que a palavra seja dada com significação, isto porque costumo afirmar que se a escuta não for atenta, deixar de ser sensível no momento da cena 1, no limite a palavra não será dada de modo a construir uma narrativa plena de significação. Por que razão? Em razão de que a palavra dada encerra um compromisso. Qual compromisso? Aquele que garanta o circuito do narrar, garantindo a relação significativa entre narração e escuta, não só pelo que Marinas denomina de núcleo do feito, mas, igualmente, pelas dimensões periféricas do que aconteceu ao narrador. Adendando a hermenêutica ricoeuriana do si ao processo de enunciação mariniano, onde ocorram narrativas reflexionadas e escuta atenta, que enlaça o si em alteridade com o diverso desse si, podemos (re)conhecer a possibilidade de compreender personagens auto(hetero)biográficas que se constroem mediante esses processos. A seguir, esquema, que representa a teoria mariniana, segundo minha leitura, a qual venho discutindo em escritos anteriores.


Figura 1

Compreensão Cênica.

Fonte: reinterpretação (Abrahão, 2016, p. 43) do constructo original de Marinas (2007, p. 118).

No Seminário de Pesquisa-Formação, que vimos desenvolvendo7, essas cenas do esquema mariniano se articulam para propiciarem construções de si significadas e ressignificadas em diferentes fases do seminário. No seminário, há um passo inicial que acolhe os acontecimentos da fase do acordo e da fase de introdução à construção da narrativa da história de formação, do modelo jossoniano. Nesse processo, referente à aceitação da construção de um memorial, este não tinha aceitação imediata e pacífica de parte de acadêmicos do Curso de Pedagogia. Não de todos, mas de alguns. Muito provavelmente em razão de estarem matriculados na Disciplina de Pesquisa em Educação e não especificamente em Seminário de Pesquisa-Formação. Naturalmente, pela própria característica da disciplina, o semestre não era reservado somente para a pesquisa de tradição (auto)biográfica, em que se insere, dentre outras metodologias, esse seminário. Os alunos, portanto, tiveram, no semestre, aulas que tratavam de diversas metodologias de pesquisa, tanto com aportes da teoria, como de natureza prática. Paralelamente, participavam de um Seminário de Pesquisa-Formação, conservando as fases jossonianas, mas adaptado a alunos desse nível de estudos, cujo “produto” é a escrita de um memorial reflexivo – o Memorial de Formação. Embora essa atividade fosse de caráter pessoal, funcionava no âmbito do seminário com leituras comentadas no círculo de colegas – circuito narrativo – durante os passos da escrita dos memoriais, processo que tinha a duração do semestre letivo. Inicialmente, como já referido, a atividade não era tão bem recebida como o era a atividade do projeto de pesquisa pela totalidade dos participantes de uma turma de 30 alunos. Essa tarefa de escrever sobre si causava, de início, um pouco de temor. No entanto, durante o desenvolvimento do semestre e especialmente ao final, não havia aluno que não estivesse engajado no processo e adorado o seminário, amado narrar de si e de sua formação até então, produzindo um memorial reflexivo construído das mais diversas formas e dos modos mais criativos.

Para os acadêmicos da Graduação, a cena 1 do modelo mariniano teve bem moduladas as fases jossonianas de elaboração das narrativas e de trabalho coletivo das narrativas. É no tempoespaço da cena 1– momento da enunciação que prevê a escuta atenta para que a palavra seja dada – que ocorre, especialmente, a pré-configuração pensada, nesse processo, segundo o círculo hermenêutico ricoeuriano. No Seminário de Pesquisa-Formação, em seu desenvolvimento, a cena 1 representa as relações narrador/ouvinte, no momento da enunciação. Durante esse processo, as alunas e os alunos traziam para a sala de aula objetos – brinquedos, roupinhas, boletins escolares, fotos, álbuns, CDs de música, livros, etc. – que os fizessem recordar de fatos e momentos vivenciados enquanto narravam partes da própria trajetória de vida. Compartilhavam esses momentos pelo narrado e ouviam as manifestações dos colegas. Na aula seguinte, traziam parte do memorial escrito contendo, inclusive, excertos das manifestações de colegas. E assim sucessivamente até darem por “concluído” o Memorial de Formação. Na fase de compreensão e de interpretação das narrativas, na qual as contribuições da pesquisadora-formadora, traziam alguns elementos conceituais que os auxiliassem a ir estabelecendo compreensões mais significativas do porquê de certos fatos por eles vivenciados, aliada à fase, muito rica, do balanço da pesquisadora-formadora e dos participantes, oportunizaram-se momentos durante os quais as alunas e os alunos avaliaram oralmente como sentiram a própria participação, a participação dos colegas, a da pesquisadora-formadora e de como esses momentos foram ricos para auxiliar na compreensão do vivido de cada um, entendimento que igualmente expressaram nos respectivos memoriais. São nessas duas “últimas” fases do modelo jossoniano que entendo se constituem, especialmente, a configuração e a reconfiguração das narrativas mediante novos e renovados entendimentos das vivências das alunas e alunos participantes do seminário, mas não só, vivencia esse círculo hermenêutico, também, a pesquisadora-formadora que, igualmente aos alunos, exerce o balanço compreensivo das próprias vivências nesse processo.

Assim, o Memorial de Formação diz respeito ao processo e à resultante da rememoração com reflexão de fatos relatados, oralmente e/ou por escrito, mediante uma narrativa de vida, cuja intriga (trama) faça sentido formativo para o sujeito da narração, desde que haja sempre a intencionalidade de clarificar e ressignificar aspectos, dimensões e momentos da própria formação, bem como significam oportunidades formativas para os colegas e o pesquisador-formador. O memorial construído, é, pois, produto de práticas formadoras geralmente havidas mediante Seminários de Pesquisa-Formação na área da Educação que se desenvolvem na academia, com intencionalidade voltada à formação continuada, tanto dos participantes como do pesquisador-formador.

No que respeita ao processo, trata-se de experienciar o momento reflexionado da narrativa de vivências que, pela reflexão, consubstanciam-se em experiências. Trata-se de o narrador, elaborador do próprio memorial, ser o sujeito da narração (embora dela também seja objeto), personagem consciente de que a reflexão empreendida é elemento sine qua non para a compreensão da própria formação e, ainda, de que o momento da narração, nos moldes aqui entendidos, é, também esse, um momento formativo para todos os envolvidos de forma idiossincrática, dependendo dos referenciais de cada participante, sejam estudantes, seja o pesquisador-formador.

A trama narrativa sobre a qual venho estudando e escrevendo tem sentido ao urdir os fatos, relacionando-os ao contexto sociopolítico e cultural do narrador. Essa intriga também enlaça, na mesma urdidura, o contexto espacial com o temporal, de tal forma que a narração se apresente, como quer Ricoeur (2014), com uma natureza tridimensional, em que passado, presente e futuro se enlaçam no sentido de que o caráter temporal da experiência do sujeito narrador, tanto na ordem pessoal quanto social, é articulado pela narrativa, especialmente quando clarifica a dualidade tempo cronológico/tempo fenomenológico.

A natureza temporal tridimensional da narrativa de vida se explicita pela rememoração do passado com olhos do presente e permite prospectar o futuro, razão pela qual a própria trama narrativa não procura necessariamente obedecer a uma lógica linear e sequencial. O tempoespaço humano ricoeuriano pode ser percebido nas narrativas de vida, o que não elide a possibilidade de o narrador nos relatar a vida mediante faixas etárias e lugares nominados, como pode ser visualizado na narrativa, a seguir, porque para além da cronologia temporal e do espaço geométrico é no sentimento (re)significado das ausências e presenças de entes queridos, de “idas e vindas” em processos formativos e de outras situações do vivido e do experienciado, que a duração do tempoespaço humano apresenta, nesse caso, um acento mais forte na história em quadrinhos constante do subtítulo que segue.

Biografização/heterobiografização de uma personagem auto(hetero)biográfica


A seguir, um Memorial construído em quadrinhos como ilustração das possibilidades criativas e artísticas de alunas e alunos, aliadas à reflexão compreensiva e construtora de uma narratividade de sentido elaborada em Seminário de Pesquisa-Formação, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), primeiro semestre do Curso de Pedagogia, em 2010, disponibilizado pela autora, cujo nome não declinei para preservar a identidade (fonte: arquivo da pesquisadora-formadora).


Figura 2a

Memorial de aluna apresentado em Seminário de Pesquisa-Formação

Fonte: memorial de aluna do Curso de Pedagogia da PUCRS, primeiro semestre de estudos em 2010 (arquivo da pesquisadora).

Figura 2b

Memorial de aluna apresentado em Seminário de Pesquisa-Formação

Fonte: memorial de aluna do Curso de Pedagogia da PUCRS, primeiro semestre de estudos em 2010 (arquivo da pesquisadora).

Figura 2c

Memorial de aluna apresentado em Seminário de Pesquisa-Formação

Fonte: memorial de aluna do Curso de Pedagogia da PUCRS, primeiro semestre de estudos em 2010 (arquivo da pesquisadora).

Figura 2d

Memorial de aluna apresentado em Seminário de Pesquisa-Formação

Fonte: memorial de aluna do Curso de Pedagogia da PUCRS, primeiro semestre de estudos em 2010 (arquivo da pesquisadora).

O memorial elaborado em formato de história em quadrinhos pela aluna da Pedagogia, no primeiro semestre do curso (ano letivo de 2010) é surpreendente pelo poder de síntese da autora. A aluna, em não mais do que 24 quadros e poucas frases em cada um, nos conta a própria trajetória de vida mediante uma narrativa com sentido, urdida em uma intriga que sintetiza o heterogêneo do vivido cujo início, meio e fim, compreende um período que se estende do nascimento à vida adulta.

Não obstante a característica econômica de palavras da narradora – trata-se, não custa lembrar, de uma história construída em quadrinhos – pode-se observar a densidade da reflexão presente em todos os momentos da escrita e das figuras que compõem o memorial. O fio condutor da narrativa nos introduz ao conhecimento experienciado da vida no seio de uma família numerosa, de classe remediada, na qual não faltavam amor, sentido de pertença e de união, mas também de sentido de renúncia e sentimento de perdão. Nota-se, igualmente, potente fio condutor imagético – a presença constante do trem – que possibilitava os deslocamentos para que a família pudesse reunir-se, sempre, quer quando a aluna e os pais viajavam para poderem estar perto dos demais familiares, quer quando os trazia para morar na mesma cidade, quer, ainda, para distanciar o pai nos momentos cuja presença era exigida pela formação de uma “segunda família”, só mais tarde descoberta. As idas e vindas proporcionadas, desde a infância até a adultez, pelas viagens de trem, deixam transparecer metaforicamente na narrativa, o tempoespaço humano, mediante as idas e vindas no transcorrer das vivências da aluna, bem como os momentos charneira (Josso, 2002) presentes em especial na vida sentimental e na vida estudantil. A figuração do trem parece ser o amálgama que sedimenta a construção identitária narrativa da aluna, construção, essa, percebida sempre que parece dar-se conta, pela reflexão, dos aprendizados havidos em uma vivência que, reflexionada, torna-se experiência, em diferenciados espaçostempo, não só da narrativa, mas fenomênicos da própria vida. Estilisticamente, o texto do memorial que integra os quadrinhos apresenta uma forma que honra o conteúdo até então tratado. Há um início que introduz a narrativa e um fechamento que não deixa o texto sem acabamento, ambos com mensagens que, não obstante escritas em 2010, continuam muito significativas para os dias atuais.

A cena 3 parece padecer do sentido que lhe é atribuído por Marinas. Quanto ao texto é difícil perceber elementos que nos induzam a pensar em cenas esquecidas ou reprimidas pela narradora. O que temos é um memorial reflexivo de fatos que lhe sucederam e das compreensões que a reflexão sobre esses fatos lhes deu sentido. Não se trata de todos os fatos, de todo o acontecido de uma vida; nem mesmo da verdade desses fatos, mas sim, da verdade para a autora de fatos que lhes foram caros e, por essa razão, ressignificados durante o processo autorreflexivo. Creio não ter elementos para afirmar que esta ou aquela escolha para narrar, tenha sido tendenciosa; que esta ou aquela escolha para deixar algo de fora da narrativa tenha sido por motivações restritivas ou por esquecimento. Ao contrário, embora explicitados apenas “de leve”, praticamente de passagem, podemos perceber momentos de terror, não só pela narrativa escrita, mas, principalmente, pela imagem no quadrinho. Teria sido agredida fisicamente na noite, podendo até ter sido estuprada? Não sabemos, mas sabemos de um sofrimento que marcou fortemente e foi narrado reflexivamente. Também é possível perceber, momentos de amparo da família e do que parece ser desamparo da paternidade em relação ao filho em que teve que arcar com as consequências de uma gravidez não programada. E, assim, tantas outras compreensões, tantas outras aprendizagens, tantos outros sentimentos; toda uma vida de altos e baixos, toda uma reflexividade no sentido de ativar uma prospecção para busca de dias melhores para si, sem esquecer do pensamento voltado para a necessidade de humanização de ser e estar no mundo (quadrinho 2). Enfim, aqui a máxima de que uma imagem vale por mais de cem palavras parece criar condições para pensarmos que, neste Memorial, o não dito com todas as palavras, mesmo assim, está dito, não se configura como cenas esquecidas ou reprimidas do esquema mariniano. O conteúdo da narrativa da aluna, assim como o processo formativo auto(hetero)biográfico havido no respectivo Seminário de Pesquisa-formação, serão analisados à luz de teóricos anteriormente trabalhados na seção seguinte.

Compreensões em aberto: construção memorialística auto(hetero)biográfica de uma personagem em formação docente


Colho o momento de encerrar este texto para entendê-lo como um avanço direcionado a um novo conhecimento orientado à formação docente, instituinte de uma diferenciada dimensão teórico práxica, voltada a novo nível epistemológico, ao destacar o valor dos Seminários de Pesquisa-Formação, dos quais, com base no movimento reflexivo sobre experiências formadoras nesse âmbito, trouxe à colação um exemplo para acentuar essa modalidade de formação como experiência impar vivenciada em ambiente criativo de invenção de si e expressa em memoriais elaborados como obras de arte, em que a arte de viver e de se reconhecer/ser reconhecido personagem do vivido se expressa de diferentes formas (história em quadrinhos, teatro de sombras, poemas, dizeres relacionados a fotos e vídeos, etc.). Essas são, em realidade, obras da reinvenção de si incentivadas e surgidas em contexto de narrativas e escutas/compreensões auto(hetero)biográficas. Conceitos como inteligibilidade biográfica, tempoespaço narrativo, identidade narrativa que, juntamente com outros construtos foram trabalhados no presente texto, permitem entender que não só a aluna narradora, mas também os alunos participantes do Seminário de Pesquisa-Formação, a pesquisadora-formadora e, até mesmo, o leitor do Memorial de Formação ao lê-lo reflexivamente, constituíram-se, nesse processo, em personagens auto(hetero)biográficas fruto da síntese de aprendizagens idiossincráticas de sujeitos epistêmicos ao produziram conhecimento de si com o outro por meio de práxis formadoras em mutualidade; sujeitos de experiência vivenciada em processos de auto(hetero)biografização; sujeitos construtores de identidades narrativas ao compreenderem-se em alteridade. Portanto, não só a aluna narradora constituiu-se em uma personagem auto(hetero)biográfica. No entanto, face às possibilidades de espaço em texto da natureza deste e para representar a formação das demais personagens auto(hetero)biográficas que se deram no coletivo desse seminário, trouxe à colação um Memorial de Formação. O memorial de uma aluna cuja narrativa o leitor teve a oportunidade de apreciar em item anterior.

Foi no acontecendo do Seminário de Pesquisa-Formação que a ação reflexivo narrativa da aluna a constituiu como personagem que atesta (a si) a história da própria vida. Essa ação de narrar encontrou receptividade em ouvintes sensíveis, atentos e, também, reflexivos que entenderam ser a aluna narradora sujeito da própria narração (ascrição)8. Entendo que esse processo se realizou como construtor de identidades narrativas: da aluna na alteridade com o grupo de estudo, tecendo reflexivamente lembranças; da pesquisadora-formadora e dos colegas – esse outro dela diverso –, e desse grupo entre si, na mutualidade com a colega narradora. A identidade narrativa da aluna constituiu-se, assim, nesse coletivo, em movimento diferenciado daquele constituidor de identidade pessoal fruto da dialética entre identidade idem e identidade ipse. Diferentemente da constituição da identidade pessoal, a mutualidade havida na alteridade constituinte dessa identidade narrativa foi eminentemente formadora para a aluna narradora, para a pesquisadora-formadora, bem como para os demais integrantes desse seminário, de modo idiossincrático, no entanto, porque fruto dos referenciais de cada sujeito desse processo formativo. Entendo que esse fenômeno igualmente ocorra com o posterior leitor, ao emprestar novo sentido ao narrado. É pertinente lembrar o que anteriormente afirmei no sentido de que considero a formação docente corolário desse processo havido no Seminário de Pesquisa-Formação, sem esquecer, no entanto, que essa formação foi um objetivo posto no conjunto de participantes, pela pesquisadora-formadora e intencionalmente trabalhado no coletivo do seminário.

Da mesma forma, igualmente importante, há um outro diverso da aluna narradora, com o qual ela dialoga na narrativa posteriormente transformada em texto no referido memorial que integra em moldura espaciotemporal as imagens e as palavras postas nos quadrinhos apresentados no item anterior: avós, pais, namorado, filha, assaltante, alteridades, essas, que, igualmente, deram sentido experiencial à narratividade dessa personagem que emana ao nos contar do passado, pensado no presente, prospectivamente com olhos no futuro.

Esse Memorial de Formação deixa transparecer a reflexividade da aluna narradora no processo de biografização – movimento compreensivo eminentemente pré-configurativo – que lhe possibilitou expressar as próprias vivências em termos de experiências de vida e de formação, construídas em intriga narrativa. Esse dispositivo mimético ocorreu no âmbito do seminário nos momentos coletivos de relato e escuta do memorial, quando de sua construção e, igualmente, no momento da leitura do formato “final” que lhe foi conferido. Assim, a biografização da aluna, segundo minha leitura heterobiográfica – movimento analítico compreensivo eminentemente configurativo – deixou transparecer (cenas 1 e 2 marinianas) a reflexividade intencional havida nesse processo que lhe possibilitou expressar as próprias vivências em termos de experiências de vida e de formação, com a inclusiva construção narrativa identitária ricoeuriana, a qual foi urdida, como já explicitado, em alteridade com sujeitos dela diferentes – as pessoas por ela rememoradas durante a explicitação narrativa – mas não só. Esse outro, também dela diverso, foi ressignificado relativamente à pesquisadora-formadora e aos colegas do Seminário de Pesquisa-Formação, em diferenciado tempoespaço humano, vivenciado na duração do seminário, em movimento auto(hetero)biográfico compreensivo e eminentemente (re)configurativo.

Sintetizando, em meu entender a palavra está dada; a escuta, em minha compreensão, foi atenta (Marinas, 2007; Abrahão, 2018, 2023), foi sensível (Josso, 2016), gerando uma narrativa possibilitadora do exercício analítico compreensivo havido mediante círculo hermenêutico ricoeuriano que proporcionou a palavra plena (Marinas, 2007). A palavra foi plena de parte de quem narrou o vivido e de quem o escutou ou leu reflexivamente; no entanto, o vivido narrado representou o momento da narração, não o momento do acontecimento, razão pela qual o acontecimento foi interpretado pelo conhecimento que a aluna (personagem que executou a ação do narrar) detinha do passado para compreendê-lo reflexivamente no presente da narrativa, segundo os próprios referenciais, e projetar o futuro (biografização em pré-configuração). Da mesma forma, a escuta atenta e sensível dos ouvintes (no caso, a pesquisadora-formadora e colegas em Seminário de Pesquisa-Formação) proporcionou configurações heterobiográficas do narrado e, certamente, também a sensibilidade do leitor do Memorial de Formação, deu-se/dar-se-á filtrada por referenciais que lhe são de conhecimento, (re)configurando a narração da personagem (heterobiografização). Esses elementos, idiossincráticos de compreensões mediante diferenciadas mimesis dos acontecimentos narrados na história em quadrinhos trazida no presente texto, oportunizaram a construção de uma personagem diferenciada – a constituída pela narradora, a compreendida pela pesquisadora-formadora e colegas do Seminário de Pesquisa-Formação, a imaginada por quem leu o Memorial Formativo ou que lerá este texto – uma personagem auto(hetero)biográfica, constituída desde diferenciadas alteridades.

Assim, o memorial da aluna da Graduação, aqui trazido como exemplificador de outras tantas narrativas formadoras construídas nas diversas edições do Seminário de Pesquisa-Formação, permite, para concluir, voltar ao título e reconhecer o valor heurístico de seminários dessa natureza para apurar nossa percepção da vida narrada em processos de formação docente via biografização/heterobiografização na construção de uma personagem auto(hetero)biográfica.

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Sobre a autora


Maria Helena Menna Barreto Abrahão


Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-1278-4098


Doutora em Ciências Humanas-Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1989). Pesquisadora Senior do CNPq. Integra o Quadro Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal de Pelotas. Líder do Grupo de Pesquisa “Profissionalização Docente e Identidade: narrativas singulares/plurais”. E-mail: abrahaomhmb@gmail.com


Resumen


El artículo opera, entre otros, con conceptos activos de biografización y heterobiografización través de procesos de formación docente en Seminario de Investigación-Formación, através de la elaboración memorialística de un personaje auto(hetero)biográfico, concepto, este, que denomino referente al sujeto del proceso narrativo que exige reflexión del narrador ya que la intriga narrativa no se da sin la intención de narrar de sí mismo a sí mismo y al otro – oyente o lector – movimiento que constituye la identidad narrativa exigente de la reflexividad que se produce en la alteridad, construida dentro de un circuito narrativo dedicadado a la formación personal/profesional de los docentes.


Palabras clave: Investigación-narrativa. Memorial auto(hetero)biográfico. Formación de educadores.


Abstract


The article operates, among others, with concepts of biographization and heterobiographisation through teacher training processes in Research-Training Seminar, experienced through the memorialistic elaboration of an auto(hetero)biographical character, concept referring to the subject of the narrative process which requires reflection from the narrator since the narrative intrigue does not occur without the intention of narrating from himself to himself and to the other – listener or reader – movement that institutes the narrative identity demanding of reflexivity that takes place in alterity, built within a narrative circuit dedicated to the personal/professional teachers´training.


Keywords: Narrative-research. Autobiographical memorial. Formación de educadores.


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Referência completa (APA): Abrahão, M. H. M. B. (2023). Biografização/heterobiografização: elaboração memorialística de uma personagem auto(hetero)biográfica em formação docente. Linhas Críticas, 29, e47664. https://doi.org/10.26512/lc29202347664

Referência completa (ABNT): ABRAHÃO, M. H. M. B. Biografização/heterobiografização: elaboração memorialística de uma personagem auto(hetero)biográfica em formação docente. Linhas Críticas, 29, e47664, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202347664

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1Sempre que não indicada a autoria do destaque, os grifos são meus para evidenciar constructos, dimensões, conceitos caros à pesquisa (auto)biográfica.

2O conceito reflexividade é utilizado neste texto em duas concepções: como ato de pensamento reflexionado e como mutualidade na alteridade entre o si e o outro, conforme o caso.

3Dizer si não é dizer eu. O eu se põe ou é deposto. O si está implicado a título reflexivo nas operações cuja análise precede a volta para ele próprio. Nessa dialética […] enxerta-se a do ipse e a do idem” (Ricoeur, 2014, p. 30, grifos do autor).

4Trata-se da “primeira determinação da ipseidade pela via de seu contraste com a mesmidade” (Ricoeur, 2014, p.347).

5Palavra dada, conceito potente encontrado em Marinas (2007) ao esclarecer que a palavra para ser dada exige uma escuta atenta. Em Josso (2016), uma escuta sensível.

6No Programa de Pós-Graduação, os Memoriais são significativos, teoricamente discutidos e formalmente contendo uma escrita de memorial eminentemente acadêmica, porém diferentemente daqueles construídos na Graduação em que a construção, plena de significados, é apresentada de modo muito criativo.

7O Seminário de Pesquisa-Formação no modelo jossoniano (Josso, 2002) é estruturado em fases, algumas das quais estão comentadas, a seguir, como vêm se delineando nos nossos seminários.

8Trata-se aqui do reconhecimento de si como sujeito do narrado, nem sempre do acontecimento (exemplo, quando a aluna narradora foi objeto de assalto).

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