Dossiê | Pesquisa narrativa no fazer ordinário da docência: múltiplas perspectivas

A escrita do memorial acadêmico: ritual de passagem ou rito de consagração?

La escritura del memorial académico: ¿rito de paso o rito de consagración?

The writing of the academic memorial: rite of passage or rite of consecration?

Maria Amália de Almeida Cunha




Destaques


O manuscrito analisa o memorial acadêmico como um gênero narrativo híbrido.


Destaca-se aqui a contribuição da sociologia para este gênero de escrita.


A escrita autobiográfica presente em um memorial pode contribuir para explicitar nossa posição social no mundo.


Resumo


Este artigo toma como objeto heurístico a análise de um memorial acadêmico para fins de progressão na carreira, uma vez que o memorial pode ser considerado um gênero narrativo que se materializa em uma escrita autobiográfica. Investiga-se aqui a contribuição da Sociologia para este gênero de escrita, ao operacionalizar categorias como rito de passagem (Van Gennep, 2012), rituais de consagração (Bourdieu, 2020) e socioanálise (Bourdieu, 1991; Kakpo & Lemêtre, 2020). Conclui-se que, ao escrever a vida em um memorial, os ritos de passagem e de consagração transmutam-se em uma trama narrativa que passa por um trabalho de socioanálise e, portanto, de objetivação da nossa posição social no mundo.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Ritos. Progressão na carreira docente. Memorial acadêmico. Escrita autobiográfica.


Recebido: 07.04.2023

Aceito: 29.06.2023

Publicado: 10.07.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202348012


Introdução


As pessoas comuns são o cimento da sociedade; elas são a sociedade vivida, sentida e experimentada. (Denzin, 1984, p. 32)

Os memoriais acadêmicos têm sido objeto de estudo nos últimos anos (Silva, 2015; 2016), não somente porque constituem um documento do gênero narrativo digno de interesse por sua fonte primária, como também por serem objeto de pesquisa que se encontra na confluência de vários campos disciplinares. Além disso, cumprem uma função de avaliação institucional (para fins de progressão na carreira) e, também, de documento resultante de um processo formativo e auto-formativo (Abrahão, 2011). Os memoriais igualmente podem ser considerados um gênero narrativo que não prescinde da escrita autobiográfica. Pode-se distinguir, neste espectro, dois tipos de memoriais: o acadêmico, que “conjuga uma natureza formalística e institucional com uma dimensão pessoal e memorialística, abordando desde a escolha da profissão e a formação inicial até o desenvolvimento da carreira docente, bem como as opções e práticas, vivências e memórias, vistas como ‘experiência’” (Silva, 2016, p. 47).

Neste caso, o memorial acadêmico apresenta uma dimensão subjetiva a partir de marcadores objetivos presentes na avaliação a respeito das diferentes exigências de uma carreira no magistério superior, sobretudo nas áreas de ensino, pesquisa, extensão e administração.

Por sua vez, o memorial de formação é resultante de um processo de rememoração que pressupõe a reflexão, pelo próprio narrador, acerca dos fatos relatados já vividos, oralmente ou por escrito, “mediante uma narrativa de vida cuja trama faça sentido para o sujeito da narração [...] compondo uma narrativa reflexionada também como um componente narrativo essencial” (Abrahão, 2011, p. 166). Ao recordar/lembrar as situações vividas, o autor questiona suas próprias ações, identifica o que aprendeu e reflete sobre as dificuldades experimentadas ao longo da carreira. Desta sorte, o memorial de formação também pode ser percebido como um dispositivo pedagógico de formação continuada ou como instrumento reflexivo de avaliação.

Seja como fonte e objeto de pesquisa, os memoriais desfrutam de uma situação bastante particular, pois, ao mesmo tempo que existe uma tradição consolidada de sua abordagem por parte da História da Educação, em outras searas das Ciências Humanas, os estudos são bastante reduzidos (Silva, 2016). Dessa forma, pode-se dizer que estudos sobre os memoriais têm ganhado legitimidade nas pesquisas e se constituído em um campo fértil de análise dos estudos biográficos e autobiográficos.

Neste artigo, parte-se da premissa que os memoriais são um gênero narrativo híbrido e multidisciplinar, razão do interesse crescente de várias disciplinas da área das Ciências Humanas. Entretanto, pretende-se aqui analisar como a Sociologia vem se constituindo como um campo interessado nas análises dos memoriais acadêmicos e quais conceitos esta disciplina pode mobilizar para estudá-los.

Pode-se afirmar que os estudos biográficos e autobiográficos não são um fenômeno recente na Sociologia, já que a então disciplina criada no contexto da modernidade, em fins do século XIX, assistiu ao florescer de obras importantes no século XX que demonstram a vitalidade das abordagens biográficas no diálogo com as Ciências Sociais, o que afirma o seu caráter híbrido e fronteiriço.

De Thomas e Znaniecki (Bertaux, 2000), no recém-criado Departamento de Sociologia na Universidade de Chicago, a obras como Os filhos de Sanchez, de Oscar Lewis (1963), nos Estados Unidos, e 33 Newport Street, de Richard Hoggart (2013), na Inglaterra, a abordagem biográfica esteve presente e inspirou muitos autores e pesquisas.

Já no final de 1970, o sociólogo Daniel Bertaux (1976) recolocava em cena a importância das narrativas e das histórias de vida como abordagens capazes de analisar o que fazem os membros da sociedade não apenas coletivamente, mas individualmente, no seu processo de ação, chamando a atenção das narrativas sobre a dimensão prática da vida social.

Em 1986, Pierre Bourdieu publica o artigo “A ilusão biográfica”, na revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Nela, o autor afirmava uma postura radical de suspeição epistêmica diante dos argumentos de defesa de qualquer valor cognitivo das histórias de vida no campo das Ciências Sociais (Oliveira, 2017). Para Bourdieu (1986), os efeitos das histórias de vida teriam como resultado uma escrita ilusória, porquanto racionalizada, acerca do vivido.

Para François Dosse (2015, p. 209), Bourdieu (1986) parte da crítica de uma suposta linearidade subjacente nos relatos de uma vida:

No seu célebre artigo, “A Ilusão biográfica”, Bourdieu contesta a historicidade do sujeito (“Falar em história de vida é pressupor ao menos que a vida é uma história, e isso é falso”), Bourdieu critica a ideia de uma continuidade, de um telos com tudo o que este implica de linearidade subjacente, “[...] um caminho, uma rota, uma trilha, com suas encruzilhadas”. Valendo-se da metáfora do metrô, o autor valoriza os esquemas estruturais como fatores explicativos por entre os quais os “agentes” vagueiam às cegas.

Não obstante a crítica à chamada “ilusão biográfica”, foi o próprio Bourdieu (2020) quem problematizou o conceito de socioanálise como um saber construído pelas Ciências Sociais para servir de mediação na reflexão que o sujeito produz sobre ele mesmo, uma vez que o exercício de socioanálise se constitui como uma escuta ativa, “uma espécie de autoanálise assistida, quando o interrogado passa por um trabalho de explicitação, frequentemente doloroso e gratificante, anunciado com uma extraordinária intensidade expressiva de experiências e de reflexões há muito tempo guardadas e reprimidas” (Bourdieu, 1991, p. 3).

O memorial acadêmico e o exercício da auto-socioanálise


Para Delory-Momberger (2021, p. 4), a própria condição humana é uma condição biográfica: “nunca deixamos de nos biografar, ou seja, de inscrever nossa experiência em padrões temporais orientados que organizam mentalmente nossos gestos, nossos comportamentos, nossas ações, de acordo com uma lógica de configuração narrativa”. Esta atividade de biografização poderia ser definida como uma dimensão do pensar e agir humano.

Segundo Breton (2020), temporalidade e relato de si são duas dimensões da atividade biográfica. Fazem parte da característica comum da experiência humana, em que o tempo figura como um elemento fundamental.

Construir um relato da sua vida é, em efeito, configurar a experiência vivida sob a forma de uma experiência que pode ser recontada, de forma escrita e oral, a partir de acontecimentos passados cujos sentidos e ligações se encontram colocados em exame novamente. (Breton, 2020, p. 45)

O sentido do tempo e da experiência se reintegram em uma trama narrativa que irá compor o texto do memorial acadêmico.

Essa escrita refletida, inscrita em uma situação biográfica particular, qual seja, o tempo de organizar os acontecimentos marcantes de uma trajetória pessoal e profissional, emula um trabalho de socioanálise. A temporalização de uma vida se inscreve, assim, em um ritual de passagem.

O ritual de passagem não deixa de ser também uma possibilidade de tomada de consciência das dimensões objetivas e subjetivas da vida. Para Berger e Luckmann (2008), a biografia subjetiva não é completamente social. O indivíduo apreende-se a si próprio como ser ao mesmo tempo interior e exterior à sociedade. Todavia:

essa simetria entre o objetivo e o subjetivo nunca é estática, ao contrário, deve ser sempre produzida e reproduzida in actu. Em outras palavras, a relação entre o indivíduo e o mundo social objetivo assemelha-se a um ato continuamente oscilante. (Berger & Luckmann, 2008, p. 180)

A Sociologia, como disciplina, teria a virtude de despertar uma consciência sociológica que atuaria em um quadro de referência capaz de manter o mundo interior vigilante, o que permitiria ao agente, gradualmente, objetivar sua posição, entender seu habitus e, se necessário, “atribuir seu sofrimento a causas sociais” (Kakpo & Lemêtre, 2020, p. 149), porque a consciência sociológica é inerentemente desmistificadora.

A socioanálise pode ser vista como um saber construído pelas Ciências Sociais para servir de mediação na reflexão que o sujeito produz sobre ele mesmo: quanto mais o indivíduo toma consciência do social no seu interior, assegurando um exercício reflexivo de suas categorias de pensamento e de ação, menos ele tem chance de agir pela exterioridade que o habita (Bourdieu, 1991).

Nas entrelinhas do memorial, uma socioanálise do deslocamento


O memorial aqui analisado é o de uma professora de Sociologia da Educação, que passou pelo processo de promoção na carreira na Universidade Federal de Viçosa (UFV)1. O memorial de Wania Maria Guimarães Lacerda possui 59 páginas e está estruturado da seguinte maneira: Introdução, 1. Família e Origem Social; 2. Formação Acadêmica; 3. Trajetória Profissional; 4. Pesquisas; 5. Perspectivas de Futuro. Da página 3 até a 34, a autora se vale da Sociologia como ferramenta útil de análise sobre o vivido, ao mobilizar elementos da sua biografia que são amplamente estudados pela disciplina, como as variáveis morfológicas do social para a compreensão de uma trajetória (origem, lugar na fratria, escolaridade, nível de instrução dos pais, processos de socialização etc.).

Logo no primeiro parágrafo, reflete sobre a dificuldade de narrar a própria vida:

A escrita de um memorial não é uma tarefa fácil. Diante de uma tela de computador em branco surge a mesma indagação de Annie Ernaux, epigrafada: onde começar? Escrever sobre os feitos dá uma sensação de arrogância e vai de encontro ao meu recato e discrição, bloqueando minha escrita. Apesar das dificuldades para desencadear e encadear a escrita, as reflexões sobre as razões e fundamentos da minha trajetória acadêmico-profissional e sobre como os condicionantes de minha origem me afetaram, vêm de longa data. Constantemente me vejo impelida a rememorar meu percurso no mundo social, em busca de mim mesma, com uma forte necessidade de compreender o que aconteceu comigo. (Lacerda, 2023, p. 1)

Como diz Didier Eribon (2021), no livro Retorno à Reims, um retorno nunca termina. Porque não há retorno sem reflexividade. Os dois se conjugam e se confundem. Ao procurar as palavras para bio-grafar a própria vida, Wania dá início a um processo de exploração tanto das estruturas físicas quanto mentais do mundo social.

Parto da minha história pessoal porque considerei que os momentos da minha vida que, no processo de racionalização do passado, se mostraram importantes para a explicação sociológica de minhas tomadas de decisão ou inação, só seriam compreensíveis se eu descrevesse primeiro sua gênese. Portanto, é no emaranhado vivenciado desde a infância, mas pensado no presente, que considero ser possível compreender o significado que atribuo às minhas escolhas e práticas. (Lacerda, 2023, p. 3)

O gênero de escrita de Wania remete a uma literatura expressiva nesta última década, presente nas vozes de sociólogos como Didier Eribon (2021) e Rose Marie Lagrave (2021), para quem as chaves de leitura de seus escritos convergem para uma reflexão marcada por um momento de entremeios entre a vida ativa e a proximidade da aposentadoria. Também encontra ressonância na obra do sociólogo José Henrique Bortoluci (2023), em seu ensaio biográfico O que é meu, em que retraça a memória de um pai e seus 50 anos de labor como caminhoneiro. Não deixa de ser uma história individual e que é também coletiva. Além disso, as três obras testemunham a trajetória de indivíduos considerados trânsfugas de classe, na acepção bourdieusiana2.

Essas obras ajudam a encontrar o formato capaz de restituir uma das múltiplas versões possíveis de cada trajetória. As entrelinhas do memorial analisado fornecem elementos para compreender tanto a vida pessoal quanto profissional de Wania, tendo sempre em perspectiva sua origem social, uma vez que sua trajetória não obedece totalmente à lei da reprodução das classes sociais. Pode-se dizer que a narrativa da autora deixa entrever uma singularidade relativa, razão pela qual é interessante analisar sociologicamente seu percurso pessoal e profissional.

A situação de vulnerabilidade econômica da minha família e de alcoolismo do meu pai, fez com que eu assumisse uma posição destacada na configuração familiar apesar de eu ser a terceira filha – ou talvez, por isso – levando-me à autocriação de responsabilidades em relação aos meus irmãos, no sentido de protegê-los e garantir-lhes oportunidades. Assim, com a sensação de estar sozinha e de ter que assumir um fardo moral, eu não me apegava a “esperanças imaginárias ou a milagres que poderiam ocorrer” (apud Elias, 1998, p. 166) e passei a enxergar na dedicação aos estudos a forma de criar condições para salvar-me e aos meus irmãos. (Lacerda, 2023, p. 7)

A reflexão sobre a origem social está presente de maneira bastante recorrente no texto da autora do memorial e fornece um indício de como a dimensão da classe social está refletida no processo de deserção, tal como uma trânsfuga de classe, na medida em que ela vai passando pelos rituais de consagração na academia.

Em sua narrativa, Wania explora os mundos sociais onde viveu a infância e a juventude e os motivos pelos quais uma trajetória desviante rompeu com o destino que estava reservado a pessoas pertencentes à sua origem social.

Reputo meu compromisso autocriado em melhorar as condições de moradia da minha família, meus reiterados desenhos de casas durante a infância, meu interesse pelo curso de Arquitetura e minha dedicação aos estudos desde os primeiros anos de escolarização à tentativa de enfrentamento da discriminação que resulta do tipo e do local de moradia. Como “boa” aluna em termos de rendimento e de comportamento recebia dos professores e outras pessoas da escola “provas de reconhecimento, de consideração ou de admiração” (Bourdieu, 2001, p. 202), obnubilava a casa de tábua, sua localização, meu pertencimento social e o julgamento estigmatizante. [...] Refletindo sobre o meu passado, acredito que minhas experiências pessoais de injustiça em decorrência da minha origem social – vividas sem ressentimento social –, minha formação ideológica revolucionária, conforme Therborn (1996), bem como minha formação em valores se somaram às situações vivenciadas em uma cidade pequena, contribuindo para a constituir um espirito de luta contra as desigualdades – para que “a vida de todos se elevasse à luz” (Camus, 1999, pp. 17-18) – e afetou meus interesses pessoais e profissionais. (Lacerda, 2023, pp. 12-14)

Dar sentido ou simbolizar as coisas que se apresentam a nós, seja uma cadeira ou um livro, significa, em alguma instância, nomeá-las. O sentido atribuído às coisas é gestado na própria sociedade. Assim, “a sociologia contribui no debate ao mostrar que a sociedade é parte fundamental do processo de aprender a usar as palavras, comungando os sentidos atribuídos a elas [...] se é que o sentido tem uma força, certamente ela tem bases materiais e simbólicas bem fundadas na própria sociedade” (Miceli, 2022, p. 17).

A fala é, portanto, um elemento central para se pensar o mundo simbólico. Se aprendemos os sentidos das coisas na sociedade, esse sentido sempre vem carregado de poder. Para Bourdieu (2008), a linguagem tem o poder de instituir o mundo, porque, ao nomeá-lo, contribui para a estruturação da percepção do mundo.

O lugar na família assumido por Wania, autora do memorial, contrariou a causalidade do provável (aquilo que parece pouco provável para o seu grupo social) e serviu como uma espécie de espelho para os seus irmãos, ao mostrar o valor do diploma e do estudo. É a filha que retorna à casa erigida pelos progenitores, tanto no sentido prático e simbólico:

O texto produzido até aqui sobre minha família e origem social ao mesmo tempo em que apresenta as razões e fundamentos da minha trajetória acadêmico-profissional, contextualizando-a, pois, as determinações do meio social e familiar foram decisivas na configuração de minhas múltiplas identidades, mostra a gênese de uma forte necessidade que tenho de compreender o que aconteceu comigo. [...] No ensino primário eram utilizados o método global de contos e o livro Os Três Porquinhos para alfabetização. Esse livro era apresentado também em cartazes, cujos conteúdos eram os episódios da história. Nessa história, dentre as casas construídas, o porquinho Palito, construiu sua casa de pau, facilmente derrubada pelo lobo. Como eu morava em uma casa de tábua, era comum meus colegas de turma fazerem alusão à minha casa, zoando o fato de ela ser de tábua. Na história dos Três Porquinhos, a construção da casa de pau por Palito era atribuída à sua preguiça ou interesse em concluir rapidamente o trabalho, como o fizera Palhaço, construindo uma casa de palha. Assim, de forma subliminar meus colegas se referiam à minha casa de tábua, como o produto da preguiça de minha família. (Lacerda, 2023, pp. 10-12)

Como lembra Memmi (1996), todo deslocamento vem acompanhado de uma produção de afetos, de representações, de antecipações, ou seja, de uma reflexividade específica que pode tomar a forma, no caso de trajetórias de ascensão, de um verdadeiro trabalho sobre si. Assim, a escrita autobiográfica de Wania pode ser percebida como a expressão daquilo que ela deve a si mesma e aquilo que ela deve à coletividade.

Talvez por isso que na escrita de seu memorial, Wania também se apresenta como aquela que guarda a memória da família e a entende como parte constitutiva da mulher, mãe, professora e pesquisadora que se construiu.

Desde Richard Hoggart (2013), com seu célebre livro autobiográfico 33º Newport Street, sabemos que famílias pobres, de trabalhadores, não dispõem do direito à memória (por meio de fotos, escritos e imagens). É esse trabalho de reconstrução que deve ser percorrido e é por esse caminho que Wania vai tecendo essas memórias, essas lembranças e, com elas, fazendo uma espécie de inventário da sua história pregressa e de sua memória familiar.

Ao retornar à minha cidade natal, por exemplo, após ter uma renda elevada eu era tratada de forma muito diferente se comparado ao tempo em que eu morava e trabalhava nessa cidade. As lojas locais, por exemplo, agora me chamavam para mostrar suas mercadorias e eu era muito bem tratada. Antes, quando ainda residia na cidade, tinha que provar que eu dispunha do dinheiro para realizar uma compra, em alguns casos até mesmo mostrando-o – foi um tempo de sofrer inesquecíveis ofensas por causa da minha origem social. Outro dilaceramento vivido em função da condição de deslocamento social se deu, como no conto A terceira Margem do Rio de Guimarães Rosa: “A gente se imaginava nele [referindo-se ao pai, sozinho no rio], quando se comia uma comida mais gostosa”. Eu me imaginava nos meus irmãos, quando comia uma comida mais gostosa e ficava tristonha. (Lacerda, 2023, p. 26)

A questão que emerge da sua reflexão pode ser esta: que tipo de adesão, tácita ou explícita, há em cada um de nós com relação às estruturas sociais e mentais que herdamos, cuja história está gravada no mais profundo do nosso corpo e de nossa subjetividade, ao nos fabricar e nos predeterminar como agentes sociais? (Eribon, 2022, p. 12)

Wania busca responder a esta questão com a utilização daquilo que podemos chamar de “introspecção sociológica”3, quando as vozes subterrâneas e mais literárias de seu texto explicitam a exploração de suas estruturas mentais, que são as estruturas sociais incorporadas. É por meio da viagem à memória do corpo que Wania urde a trama narrativa, a partir da memória dos lugares, das construções, ambientes e instituições que ela conheceu:

Desde o ingresso na docência no ensino superior eu oscilava entre considerar que eu dispunha das habilidades e competências necessárias para essa função e não as possuir, mas minhas disposições à exposição me predispuseram a aceitar o convite, onde me tornei uma professora. (Lacerda, 2023, p. 27)

Nesses termos, pode-se dizer que Wania estabelece sua escrita do memorial como uma escrita plana, sem incorrer no risco de reproduzir uma espécie de “dolorismo”4. Em sua narrativa, é possível perceber a preocupação com o relato dos fatos e da descrição do real como uma espécie de compromisso com a verdade.

Wania narra situações em que o sentimento de vergonha, para utilizar o sentido atribuído por Gaulejac (2006), é percebido como um sentimento moral, mas também existencial e social.

Em geral, a vergonha é um termo com muitas interdições, porque quase nunca se fala sobre ela. Não se nomeia, nem se pode cuidar das feridas, que são um sintoma. Por isso, ela pode ser definida como um meta-sentimento. Mas é preciso explorar as camadas da “vergonha”, sobretudo aquelas que são atravessadas por processos de anulação que perpassam as relações sociais, assim como nos sentimentos de superioridade e inferioridade.

Meus tios maternos apoiavam a mim, aos meus irmãos e à minha mãe com alimentos, quando era necessário. Nas situações de embriaguez do meu pai, eles também se faziam presentes, protegendo a mim, aos meus irmãos e à minha mãe dos arroubos violentos do meu pai. A ajuda dos meus tios, em uma época em que não existiam políticas públicas de proteção às crianças da violência doméstica e de apoio às famílias pobres, com programas de transferência de renda, por exemplo, foi fundamental para a constituição de minha trajetória escolar. [...] A percepção do meu pertencimento social e dos seus efeitos se deu muito cedo, em torno de sete anos de idade, pois as ofensas e humilhações em decorrência dessa origem social foram prematuras. Considero que a precocidade de minhas percepções sobre meu pertencimento social e seus efeitos estava relacionada ao meu local de residência, ao tipo de construção da minha morada, ao alcoolismo do meu pai, muito conhecido na cidade pequena em que eu residia e, especialmente, à minha presença em espaços de não pertencimento, como, por exemplo, a turma que eu integrava no Grupo Escolar e nas Classes Anexas; a circulação pelos diferentes espaços da cidade, com o objetivo de realizar a entrega das costuras feitas pela minha mãe e a participação em coroações de Nossa Senhora, no mês de maio escolar. (Lacerda, 2023, pp. 7- 9)

É esse sentimento de indignação, que nasce com a vergonha, que, muitas vezes, move e reorienta a narrativa de Wania.

Dessa forma, entendemos que refletir sobre esse meta-sentimento é importante porque, muitas vezes, a humilhação leva a calar as violências sofridas, a cultivar um sentimento de ilegitimidade. Em alguns trechos do seu memorial, a autora explicita, ainda que de forma sutil, esse sentimento experimentado e que está relacionado às tensões colocadas pela classe social. Esse sentimento de ilegitimidade aparece em sua fala quando, por exemplo, ela descreve o início de seu processo de profissionalização, ao ingressar no mestrado acadêmico em Educação:

No Mestrado, experimentei inicialmente a sensação de que não tinha lido nada do que deveria. Os colegas, muitos deles egressos da UFMG, citavam autores e obras que eu não conhecia. Anotava todas elas para ler, o mais rapidamente possível, acreditando que com isso eu me aproximaria da condição intelectual dos meus colegas. Tal aproximação foi uma tentativa em vão. O que me colocava em situação mais confortável na turma era minha experiência profissional, a qual permitia que eu refletisse sobre questões importantes discutidas em sala de aula. Poucos tinham essa mesma experiência na turma escolar. (Lacerda, 2023, pp. 19-20)

Medir a distância entre o mundo natal e aquilo que nos tornamos é o que permite acabar com o sentimento de exílio entre aqueles que conquistaram uma nova posição social, distante da sua condição original, transgredindo os limites da linha, porque hoje consagrados pela instituição.

No entanto, ao percorrer analiticamente o passado, por meio da escrita do memorial, Wania pode ser descrita como uma “trânsfuga”, pois trânsfugas são todos aqueles que, um dia, cruzaram uma fronteira: social, nacional, cultural.

O sentimento de vergonha que a ordem social inscreve no corpo dos desviantes é uma das dimensões mais fundamentais da relação com o mundo e com os outros. O mundo interior não é outra coisa senão o produto, inscrito em nós, sedimentado, camada a camada, resultante de nosso longo convívio com o mundo exterior.

Portanto, o nosso corpo é um corpo marcado pelo pertencimento social:

Na sala de aula, as diferenças de pertencimento social eram evidenciadas em diversas situações, por exemplo, quando ocorriam as festas de aniversários e a maior parte das crianças levavam bolos e refrigerantes para a comemoração e eu não podia fazer o mesmo ou no dia da professora, quando as crianças ricas a presenteavam com sabonetes e talcos Cashmere Bouquet, considerados por mim nessa época, como um presente distinto, no sentido de diferente e superior. Eu levava um buquê de rosas de diferentes tamanhos e cores, colhidas no entorno da minha casa e feito pela minha mãe. Ao entregá-lo, sentia um enorme constrangimento, pois não o considerava um presente. Assim, como Bourdieu (2005, p. 110), eu me sentia apartada dos meus colegas de turma “por uma espécie de barreira invisível, a qual se exprimia de vez em quando por meio de insultos rituais [...]”, porém, no meu caso, por causa da minha origem social. [...] Meu comportamento na turma era marcado pelo recato, silêncio e quietude. Isso, juntamente com meu pertencimento social e o fato de ser mulher, provavelmente foram as razões que me levaram a ser requisitada para “dar atenção” a uma criança com trissomia do cromossomo 21, parente de uma professora, a qual comparecia com certa frequência no Colégio, quando eu frequentava as classes anexas nessa instituição, ainda cursando os anos iniciais do ensino fundamental. Essa criança ficava na minha turma, sob os meus cuidados, ou seja, de outra criança, o que me oportunizou o aprendizado de convivência e respeito às diferenças. (Lacerda, 2023, pp. 13-14)

Tomar consciência sobre a violência que a ordem social exerce sobre os indivíduos é parte do trabalho da narrativa da autora. Para tanto, sabemos que não basta apenas descrevê-la, analisá-la em detalhe, para deixar de estar sujeito a ela, submetido à sua força. É na urdidura da trama entre o vivido e o narrado que podemos compreender uma trajetória singular, mas que pode ser definida também como uma série de posições ocupadas sucessivamente por um mesmo agente (ou um mesmo grupo) em um espaço do devir e sujeito a transformações incessantes. O trabalho de escrita, por meio da socioanálise, não deixa de ser um trabalho de contextualização, de compreensão e de interpretação, essencial.

O memorial: rito de passagem ou rito de consagração?


Ao investigar a natureza sociológica dos ritos, Van Gennep (2012) descreveu um fenômeno social de grande importância. Sem os ritos, certamente, a sociedade humana não existiria como algo consciente, uma dimensão a ser vivenciada e não simplesmente vivida, como ocorre com os gestos mais pesados da rotina cotidiana.

Os ritos documentam a forma como as sociedades se organizam, uma vez que constituem um dos elementos críticos da vida social humana. Falar em vida social é falar em ritualização, em movimentos sociais coletivos.

Pode-se inferir que toda liturgia que envolve os ritos não deixa de ser um ato de interpretação. Assim, a vida de todos nós consiste em uma sucessão de etapas e, a cada conjunto delas, acham-se relacionadas cerimônias cujo objeto é idêntico, qual seja, fazer passar um indivíduo de uma situação determinada a outra situação igualmente determinada (Van Gennep, 2012), quando se ultrapassa, então, uma linha, uma fronteira.

De acordo com Van Gennep (2012, p. i.), “para os grupos, assim como para os indivíduos, viver é continuamente desagregar-se e reconstituir-se, mudar de estado e de forma, morrer e renascer”. É assim que cada pequena morte é seguida por um renascimento em nova condição.

Ainda para este autor, todo rito reúne três fases: os ritos de separação, os ritos de margem e os ritos de agregação. Cada cerimônia tem uma finalidade própria. Os ritos de separação seriam os preliminares (como os rituais funerários), os de margem seriam os liminares (cerimoniais, etapas mais autônomas da vida) e, finalmente, os ritos de agregação seriam os pós-liminares (como o nascimento) (Van Gennep, 2012).

O rito que simboliza a escrita de um memorial acadêmico pode ser descrito como a fase liminar, ou seja, uma parte integrante dos ritos de margem. Os ritos de margem, segundo Van Gennep (2012), situam-se em zonas consideradas neutras, com possibilidade de concretização de ritos de entrada e de saída, início e fim, morte e renascimento. É a partir desse ponto de vista privilegiado que a autora do memorial aqui sob escrutínio iniciará um trabalho de compreensão e recomposição dos acontecimentos mais marcantes de sua vida. Berger (1986, p. 65) refere-se a esse fenômeno como “alternação biográfica”, isto é, “a percepção de si mesmo diante de uma situação infinita de espelhos, cada um dos quais transforma a imagem numa diferente conversão potencial” (Berger, 1986, p. 75).

Situar-se biograficamente na fase liminar do rito (entre a entrada e a saída) permitiu à autora do memorial exercitar a alternação biográfica, que nada mais é do que a capacidade de modificar as interpretações e reinterpretações de nossa própria biografia, uma vez que falamos da história de uma vida para caracterizar o entremeio entre nascimento e morte.

Isso porque, de acordo com Van Gennep (2012), há sempre novos liminares a atravessar, pois a vida do indivíduo é um processo contínuo de desagregar-se e reconstituir-se. Nesse sentido, os ritos não deixam de exprimir os nossos processos de socialização, que ocorrem em uma base vitalícia, à medida que passamos de um mundo social para outro. Vivenciar a experiência da relatividade e da “alternação” entre esses mundos “permite a pessoa considerar sua biografia como um movimento dentro e através de mundos sociais específicos, os quais estão ligados a sistemas de significados específicos” (Berger, 1986, p. 77).

Dessa sorte, escrever um memorial acadêmico reflete uma das etapas do nosso processo de socialização, pois, ao biografar os anos de trabalho que compreendem nossa socialização secundária, a autora do texto é compelida a realizar uma pausa que se situa entre o início e o fim. É um olhar da travessia que se faz da margem, é um morrer e renascer, “um agir e depois parar, esperar e repousar, para recomeçar em seguida a agir, porém de modo diferente” (Van Gennep, 2012, p. i).

Ao submeter um memorial acadêmico à docimologia de seus pares, o indivíduo é consagrado estatutária e simbolicamente à condição de professor que ocupa o mais alto grau da carreira do magistério superior público federal5. Ele passa, então, também por um rito de consagração, além do rito de passagem.

Bourdieu (2008), em sua crítica ao conceito de ritos de passagem de Van Gennep (2012), cuja obra foi publicada originalmente em 1909, sublinha que o maior efeito social do rito não é celebrar a passagem, mas consagrar uma diferença de modo a fazê-la existir como distinção social ou como exclusão. “Na verdade, o efeito social do rito não é separar os que passaram por ele daqueles que ainda passarão, mas, sobretudo, diferenciar aqueles que podem passar daqueles que nunca o farão” (Bourdieu, 2008, p. 98).

Para ir mais longe, penso que é preciso endereçar à teoria do rito de passagem certas questões que ela mesma não suscita e, em particular, aquelas atinentes à função social do ritual e da significação social da linha, do limite cuja passagem o ritual torna lícito, a transgressão. (Bourdieu, 2008, p. 97)

A percepção de ultrapassar estatutariamente uma linha, uma fronteira, nem sempre é vivida como um ritual de consagração. Em sua análise a respeito do conceito de rito em Bourdieu, Montero (2017) assinala que os ritos instituem fronteiras e identidades; ao fazê-lo, consagram direitos, limites e competências que colocam à prova o arbitrário das classificações. É um ato que se aproxima de uma espécie de “magia social”, pois o rito de instituição (que é o da consagração), deve sua eficácia simbólica ao fato do que significa ao homem e aquilo que ele pode ser: “torne-se o que você é” (Bourdieu, 2008, p. 102). O trabalho da instituição, como o trabalho de inculcação, tratará o corpo como uma memória para fazer advir esta segunda natureza que é a função social.

Em 1978, aos 15 anos de idade, ingressei no curso de Magistério em minha cidade, única formação possível de nível médio, ofertada no turno noturno. No primeiro ano desse curso, meu rendimento escolar abaixo da média. Porém, no ano seguinte, retomei minha condição de “boa” aluna. Como Hoggart (1991) que teve que de mudar a si mesmo várias vezes durante sua vida, decidi mudar a mim mesma, transformando o que me martirizava – não ter conseguido estudar no CEFET-MG – e retomar minha dedicação aos estudos, afetada pelo adágio, repetido várias vezes pela minha mãe: se tem que fazer algo, deve fazê-lo bem feito. (Lacerda, 2023, p. 17)

Segundo Moraes (2022, p. 4), é por meio do habitus que as diferenças constitutivas do espaço social (as práticas, os bens etc.) são transformadas em signos de distinção, em diferenças que constroem os sistemas simbólicos da ordem social e garantem a existência da própria divisão, ou seja, tanto as estruturas quanto as disposições:

Assim, consegui erguer-me, dirigindo o meu pensamento para a situação na qual me encontrava e buscar uma saída para um iminente desastre (Elias, 1998), nesse caso, a interrupção dos estudos, reconhecendo no processo, os elementos que eu poderia usar para controlar a situação. O trabalho, aos dezesseis anos de idade, com uma carga horária diária de oito horas, conciliado com os estudos, tornou-se aquilo que me mantinha erguida. Além disso, a constituição de um habitus “resistente”, propício ao enfrentamento das dificuldades advindas da condição de não ter herdado capitais me mantive disposta, ao longo do tempo, à dedicação aos estudos. (Lacerda, 2023, p. 17)

O rito marca solenemente a passagem de uma linha que instaura uma divisão fundamental de ordem social, ao chamar a atenção do observador para a passagem (de onde vem a expressão “rito de passagem”), uma vez que o importante é a linha. Mas o que separa essa linha? Um antes e um depois. O trabalho da escrita de um memorial, que não deixa de ser uma “alternação biográfica”, instaura também o sentimento de ambivalência, de deslocamento, que pode ser explicado pela condição de trânsfuga de classe da autora, quando ela abandona sua condição de origem para ascender à classe dominante.

Para Bourdieu (2008), os ritos consagram uma distinção legítima. A separação realizada por ocasião do ritual (que opera ele mesmo uma separação) exerce um efeito de consagração. Conquistar uma nova posição social na carreira, alcançando a classe de titular, é um rito de instituição que é também de consagração. Instituir, atribuir uma essência, uma competência, é o mesmo que impor um direito de ser que é também um dever ser (ou um dever de ser). É fazer ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, lhe fazer ver que tem de se comportar em função de tal identidade. Neste caso, o indicativo é um imperativo.

Refletindo sobre as razões de ter assumido muitas atividades que comprometeram a duração razoável do Mestrado e do Doutorado, duas ilações foram tiradas. A primeira explica a sobreposição de ocupações pelo fato de eu residir em uma cidade pequena. Na cidade o número de pessoas qualificadas e com compromisso social para ocupar cargos de gestão em favor dos desfavorecidos era reduzido. Então, eu deveria assumir os cargos a mim oferecidos, pois tinha a obrigação de retribuir as dádivas recebidas (Mauss, 2003). [...] Outra ilação se embasa em Pascal (2001). Em suas análises sobre a grandeza e a miséria da condição humana, esse filósofo afirma que o homem é profundamente infeliz, pois só um bem infinito poderia satisfazer seus anseios. Por isso, o homem precisa se lançar fora de si para não ver seu eu verdadeiro, ocupar-se. Contudo, as ocupações buscadas pelo homem para livrar-se do seu ser, para se animar, não são isentas de paixões e, ainda, ele busca a própria busca, não as coisas. (Lacerda, 2023, p. 21)

Nesse aspecto, um memorial acadêmico, considerado um “ato de instituição”, é ele mesmo carregado de uma eficácia simbólica específica e fundamental que consiste em transformar o fato em direito, uma vez que instaura um poder de legitimação àqueles que cruzaram uma linha. Não deixa de ser também a luta pelo monopólio do poder simbólico, ou seja, a luta pelo poder de enunciar legitimamente a verdade do mundo. “A estratégia universalmente adotada para eximir-se duradouramente da tentação de sair da linha consiste em naturalizar a diferença e transformá-la numa segunda natureza através da inculcação e da incorporação sob a forma de habitus (Bourdieu, 2008, pp. 102-103).

Nossa hipótese é a de que é difícil dissociar o rito de passagem do ritual da consagração. Tais ritos passariam por um processo de transmutação, de alternação, observável em uma escrita reflexiva por meio da narrativa autobiográfica, normalmente presente no memorial acadêmico como requisito parcial para a classe de titular.

Esse trabalho leva, muitas vezes, o autor do memorial a desconfiar do merecimento da consagração, uma vez que o ritual de passagem explicita um desconforto entre a origem e o destino, ao objetivar sua condição/posição social. É no trabalho de socioanálise que Wania procura compreender as razões de sempre assumir muito trabalho, chegando a comprometer a duração tanto de seu mestrado quanto de seu doutorado. Como se ela não merecesse, como se precisasse “se lançar fora de si para não ver seu eu verdadeiro”. Evoca a miséria de posição/miséria de condição, como se o fato de ter alcançado uma posição não a redimisse de sua condição.

Nem sempre, ao escrever o memorial acadêmico, seu autor sente-se autorizado a atravessar a soleira, ou seja, a reingressar em um mundo já conhecido, porém de modo diferente. Para ingressar nesse “velho mundo novo”, autorizado por um processo de avaliação da promoção na carreira, é necessário um esforço autobiográfico, em que se coloca à prova um exercício de socioanálise.

Considerações finais


Se todo memorial não deixa de ser uma fabricação de si, o memorial acadêmico analisado reflete um trabalho de objetivação da condição social de sua autora, ao narrar, em primeira pessoa, a passagem de um lugar a outro, autorizada pelos ritos de consagração e de passagem.

Considera-se aqui o papel determinante do percurso escolar de Wania como aquele que definiu inteiramente a sua vida. Ele pode ser compreendido apenas se o conectarmos ao meio social de onde ela veio.

Ao cruzar a linha das fronteiras estabelecidas pelo mundo social, Wania pode ser descrita como um sujeito em deslocamento, ou talvez uma “trânsfuga de classe”. É o que Bourdieu discutiu com clareza em inúmeros trabalhos, mas sobretudo no texto “A Odisseia da reapropriação” (Bourdieu, 2006), transcrição de uma conferência sobre o poeta e antropólogo argelino Mouloud Mammeri. Nesse texto, Bourdieu (2006) compara o movimento do trânsfuga a uma espécie de peregrinação, que comporta momentos como o afastamento da cultura nativa em direção à cultura universal universitária e, posteriormente, o de reapropriação da cultura de origem. É um movimento que implica retraçar a viagem, tal como Homero, graças ao resgate da cultura renegada por meio da cultura que impôs sua negação. O trabalho de auto-socioanálise requerido de um memorial para fins de promoção na carreira certamente pode ser uma ferramenta que permite explicitar essa dupla dimensão da viagem entre mundos, vivenciada por uma trânsfuga de classe. O fim desse percurso equivale à confrontação de algumas das modalidades da dominação simbólica, como a reflexão sobre a vergonha, o sentimento de ilegitimidade etc.

Bourdieu (2006, p. 94) diz que:

O trabalho que, ao vencer a vergonha em relação à cultura de origem, conduz à sua reapropriação, constitui uma verdadeira socioanálise, de que jamais se está seguro de ter sido inteiramente concluída. Isso porque a superação da negação inicial não pode tomar a forma de uma negação daquilo que determinou a própria negação inicial, isto é, de todas as fontes que a cultura dominante oferece.

Para Didier Eribon (2022, p. 104), “essa Odisseia é [...] o caminho que todos aqueles que provêm de uma sociedade dominada, ou de uma classe ou região dominada em sociedades dominantes, devem seguir para se encontrar ou para se reencontrar”. A trama narrativa presente no memorial aqui analisado pode ser interpretada como parte dessa Odisseia.

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Sobre os autores



Maria Amália de Almeida Cunha


Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-0233-3883


Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Membro dos grupos de pesquisa Observatório Sociológico Família-Escola (OSFE) e Laboratório de Pesquisa em Experiências de Formação e Narrativas de Si (LAPENsi). E-mail: amalia.fae@gmail.com



Resumen


Este artículo toma como objeto heurístico el análisis de un memorial académico con fines de progresión profesional, ya que el memorial puede ser considerado un género narrativo que se materializa en un escrito autobiográfico. Se investiga aquí la contribución de la Sociología a este género de escritura, operacionalizando categorías como rito de iniciación (Van Gennep, 2012), rituales de consagración (Bourdieu, 2020) y socioanálisis (Bourdieu, 1991; Kakpo & Lemêtre, 2020). Se concluye que, al escribir la vida en un memorial, los ritos de paso y consagración se transmutan en una trama narrativa que pasa por un trabajo de socioanálisis y, por tanto, objetiva nuestra posición social en el mundo.


Palabras clave: Ritos. Progresión en la carrera docente. Memoria académica. Escritura autobiográfica.



Abstract


This article takes as its heuristic object the analysis of an academic memorial for the purpose of career progression, since the memorial can be considered a narrative genre that materializes in an autobiographical writing. The contribution of Sociology to this genre of writing is investigated here, by operationalizing categories such as rite of passage (Van Gennep, 2012), consecration rituals (Bourdieu, 2020) and socioanalysis (Bourdieu, 1991; Kapko & Lêmetre, 2020). It is concluded that, when writing life in a memorial, the rites of passage and consecration are transmuted into a narrative plot that undergoes a socio-analysis work and, therefore, objectifies our social position in the world.


Keywords: Rites. Progression in the teaching career. Academic memorial. Autobiographical writing.




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Referência completa (APA): Cunha, M. A. de A. (2023). A escrita do memorial acadêmico: ritual de passagem ou rito de consagração? Linhas Críticas, 29, e48012. https://doi.org/10.26512/lc29202348012

Referência completa (ABNT): CUNHA, M. A. de A. A escrita do memorial acadêmico: ritual de passagem ou rito de consagração? Linhas Críticas, 29, e48012, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202348012

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1A professora autorizou o uso de seu memorial para a escrita deste artigo, bem como a revelação de sua identidade sempre que necessário, portanto, optou pelo não anonimato.

2Na obra de Bourdieu, há distintas chaves para se entender o conceito de trânsfuga de classe. Comumente, compreende-se o trânsfuga como o desertor, aquele que abandona a sua origem para se movimentar entre estratos sociais distintos, fonte de enorme sofrimento para quem transgride sua condição social original.

3Bernard Lahire (2018), em sua obra A interpretação sociológica dos sonhos, utiliza a expressão “introspecção sociológica” para dizer que o exercício de análise dos estados psíquicos também pode ser realizado pelo sociólogo. Para o autor, a Psicanálise e a Sociologia podem se articular de maneira fecunda.

4Este conceito tem sido trabalhado pelo sociólogo Gérald Bronner (2023), que tem proposto uma visão mais nuançada sobre o peso da origem social sobre os indivíduos. Contra o sofrimento excessivo ou dolorismo, o indivíduo que atravessa “diferentes mundos sociais” também pode vivenciar uma experiência rica, estimulante e muito mais complexa de seu meio social de origem.

5A Lei n.º 12.772/2012 (Brasil, 2012) dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreiras e Cargos do Magistério Federal.

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