Desigualdades e retrocessos na Educação Básica do Piauí

Desigualdades y retrocesos en la Educación Básica en Piauí

Inequalities and setbacks in Basic Education in Piauí

Emerson de Souza Farias, Masilene Rocha Viana




Destaques


O desempenho do Piauí nas metas da Educação básica sinaliza para retrocessos.


Políticas de ultradireita comprometeram a execução do Plano Nacional de Educação.


A agenda neoliberal preteriu o direito à educação em função dos valores do mercado.


Resumo


O presente artigo objetivou analisar os resultados alcançados no Piauí na Educação Básica a partir do monitoramento do Plano Nacional de Educação (2014-2024), tomando como problema o alcance das metas previstas no contexto de avanço da ultradireita e do quadro de desigualdades do Estado. A metodologia de pesquisa envolveu análise documental e bibliográfica. Como principais resultados, verificou-se desiguais desempenhos entre os municípios, alguns com indicadores satisfatórios e casos atípicos, enquanto a maioria apresenta desempenho aquém das metas, sinalizando para significativos retrocessos na Educação básica.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Educação Básica. Desigualdades educacionais. Piauí.


Recebido: 19.06.2023

Aceito: 09.11.2023

Publicado: 07.12.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202349211


Introdução


Assegurar o direito à Educação em territórios ainda com fortes marcas de pobreza e desigualdades é tarefa hercúlea para quem implementa a política educacional, planejada para ser desenvolvida no Brasil a partir de parâmetros assentados no caráter público da educação e no acesso a serviços de qualidade. Este é obviamente um desafio exponenciado quando encontra óbices danosos para a educação, como os produzidos pela pandemia de coronavírus disease 2019 (covid-19), ou ainda – de mais longa temporalidade, embora também de grande monta – o crescimento substantivo das forças conservadoras movendo energias de ultradireita para reproduzir abordagens alienantes e perversas, que embotam o processo criativo e a livre expressão de uma educação e de uma ciência que objetive superar a ignorância, na direção de práticas e modos de vida emancipatórios.

Quando, no governo de Dilma Rousseff, foi definido o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2014 – para vigência até 2024 –, aqueles que o formularam estabelecendo metas e estratégias para o decênio não tinham como projetar os cenários desafiadores que incidiriam sobre a implementação da política de educação no período, tampouco o acirramento das tensões e polarizações entre projetos políticos em disputa que envidariam em um golpe na presidenta Dilma, com apoio do Congresso Nacional, que aprovando seu impeachment abria mais oportunidades políticas para o ascenso de forças políticas conservadoras, com sérias implicações para a educação brasileira.

Com efeito, os que faziam a Educação brasileira enfrentariam, nos anos em que teriam de implementar o plano, um contexto socioeconômico e ideopolítico adverso, eivado de polarizações, dissensos e contradições, que gerou desestabilizações importantes na tarefa de fazer avançar o processo democrático brasileiro; e, no que tange em específico à política educacional, precisariam reparar os danos de longa data que ainda a colocavam em patamares insatisfatórios de qualidade, de acesso e de permanência dos estudantes em graus distintos de ensino.

Hodiernamente, restando pouco mais de um ano para averiguar os êxitos e dificuldades do aludido plano, é o momento de apreciar o que indicam os esforços de monitorar o plano e o que ainda precisa ser enfrentado, demandando, portanto, um olhar para os indicadores até aqui alcançados e para os que ainda exigem foco e zelo dos órgãos com competência para implementá-los. Assim, o presente artigo objetivou analisar os resultados de desempenho alcançados no Piauí na Educação Básica a partir do monitoramento do Plano Nacional de Educação (2014-2024), tomando como problema o alcance das metas previstas no contexto de avanço da ultradireita e o quadro de desigualdades do Estado, entendendo que se fazia necessário dirigir atenção ao que indicam os números do monitoramento, em um Estado de marcas profundas de pobreza e desigualdades, frente ao cenário de crise sanitária, de cortes de recursos e mesmo políticas em retrocesso do plano nacional.

Como direito assegurado pelo ordenamento jurídico-político de 1988 e regulado por normas infraconstitucionais diversas, o direito à educação das crianças e adolescentes é dever do Estado, que deve ofertá-lo como serviço público, cabendo a diversas instituições na esfera estatal e às famílias o dever de zelar pela efetividade do que prescreve a Constituição Federal, especialmente o Ministério Público, os variados conselhos que lidam com as questões do âmbito da educação (conselhos estaduais, municipais, escolares, tutelares dos direitos das crianças e adolescentes), os Tribunais de Contas, os fóruns estaduais de educação e, obviamente, as instâncias governamentais das três esferas federadas (União, estados e municípios), que, em regime de colaboração, devem assegurar o respeito aos direitos educacionais, dentro de suas competências específicas.

Neste propósito é que foi estabelecido no Brasil o Plano Nacional de Educação, conforme definido na Lei nº 13.005/2014 (Brasil, 2014), construído a partir de amplo esforço de gestores, movimentos sociais e variadas instituições, associados aos objetivos de promover a educação e fazer valer as orientações constitucionais que garantem o direito à educação e visando assegurar, a partir da definição de metas e estratégias, a manutenção e o desenvolvimento do ensino, em seus diversos níveis, etapas e modalidades, por meio de ações integradas das diferentes instâncias federativas – embora, no contraponto, haja também a consciência que o plano careceu de diagnóstico que caracterizasse, como indica Saviani (2019, p. 512), "a situação educacional com seus problemas, limites, carências e perspectivas" ensejando metas, de certa forma, arbitrárias.

Afinal, parte de extrema importância no ciclo das políticas públicas consiste no planejamento, etapa que define diretrizes, metas, objetivos e estratégias a serem desenvolvidas na fase que lhe sucede, a da implementação, quando agentes "interagem na oferta, aos beneficiários, de serviços públicos previstos em diretrizes" (Di Giusto & Ribeiro, 2019, p. 8), no caso em apreço, as do PNE. Todavia, entende-se que a implementação não pode ser considerada como a execução racional do planejado, já que, tendo caráter relacional, fruto de interações com finalidades e em diferentes contextos e condições de trabalho, envolve também padrões distintos de interações entre os implementadores, suas discricionariedades, as "diversas interpretações decorrentes dos processos de comunicação, treinamentos", como também "as suas crenças e valores pessoais" (Di Giusto & Ribeiro, 2019, p. 8).

Com efeito, os agentes implementadores no caso do PNE são múltiplos. Constituindo-se, enquanto instrumento de planejamento da Educação, o PNE vinculou todos os entes estaduais, municipais e o governo federal ao dever de cumprir suas 20 metas com as correspondentes 254 estratégias para garantir acesso à educação de qualidade no Brasil. E, neste diapasão, seguindo as orientações do plano nacional, o Estado do Piauí – alvo das reflexões no presente artigo – acolheu as diretrizes do plano, definindo também, em modelo similar, conforme Lei 6.733 (Piauí, 2015), o seu Plano Estadual de Educação. Assim, os anos seguintes ao plano nacional seriam de implementação das ações com envolvimento dos outros entes federados formatando planos em suas esferas de ação, de forma a viabilizar as orientações do PNE.

O presente artigo, produzido como parte dos esforços de uma pesquisa mais ampla1, toma como foco de análise a realidade do estado quanto ao cumprimento, em específico, das metas classificadas como estruturantes na educação básica, ou seja, dirige a atenção para os dados resultantes do monitoramento até aqui da Política de Educação Básica no Piauí.

Neste trabalho tomou-se como aportes metodológicos a pesquisa bibliográfica – conferindo destaque para as obras de Saviani (2019), Cury (2002), Pinto e Brega Filho (2014) e Pochmann e Guerra (2019) – e a análise documental das normativas nacionais e estaduais (Brasil, 1996; 2014; 2022a; 2022b, Piauí, 2015), ou seja, a pesquisa utiliza dados secundários colhidos, em especial, das bases de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), relativos ao (des)cumprimento das metas do PNE 2014-2024 pelo Piauí e, neste esforço, procura não descuidar do quadro mais ampliado em que se situam as políticas nacionais, em particular as dirigidas à Educação.

A análise dos documentos e obras (livros e revistas) envolveu, em um primeiro momento, a seleção nas bases de pesquisa de periódicos de ampla circulação no país e nas bases de dados do monitoramento da política no período pós 2014; e, na sequência, a análise cuidadosa do material selecionado, priorizando informações mais atualizadas do monitoramento da política2.

Obviamente esta tarefa não pode desconsiderar os “abalos sísmicos” da conjuntura que certamente incidiram negativamente nos indicadores, tampouco as profundas dificuldades para monitorar a implementação do plano. Uma delas é o fato de que, até o presente momento, o país não conseguiu findar o censo demográfico, que sofreu retardo por conta da pandemia, como também a aplicação da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua foi significativamente afetada, gerando prejuízos para a produção de estatísticas educacionais, como indica o relatório do Inep (Brasil, 2022a, p. 12). Porém, é necessário demarcar, o atraso se deu, sobretudo, em razão de sua realização não ter merecido do governo Bolsonaro a devida atenção, de forma a garantir sua atualização, o que seria de grande valia para o conjunto dos que fazem e precisam de políticas públicas.

O artigo está estruturado, além desta introdução e das considerações conclusivas, em duas seções em seu corpo principal. A primeira está dirigida a apresentar, em largas linhas, aspectos do plano nacional e da conjuntura política no período de sua implementação, afinal os anos decorridos desde a definição e a publicação do PNE – que nos colocam no penúltimo ano de sua execução – foram tempos desafiadores e mesmo sombrios para a educação nacional, marcados, para além da pandemia, por um cenário regressivo no que tange aos direitos sociais e por forte ódio à democracia, especialmente às forças mais críticas que buscam edificá-la. A seção seguinte foi orientada para o exame das singularidades do Piauí quanto aos resultados na educação básica, de forma a analisar em que aspectos o Piauí aproximou-se do alcance das metas com estratégias exitosas, mas, também, buscando verificar os indicadores e metas que se evidenciam insatisfatórios, e mesmo com os sinais de retrocesso no Estado, conferindo visibilidade ao cenário desigual que se descortina quando se analisam os números do monitoramento da educação no Piauí.

Nas páginas finais, passo em revista os principais achados do estudo, denotando, à luz do que foi planejado e do que indicam os números do monitoramento, o panorama desafiador desta conjuntura em que se situa a política educacional no Estado do Piauí, eivado de contradições e desafios a enfrentar na direção de uma educação básica inclusiva, crítica, competente, a firmar-se com um dos pilares de sustentação do avanço na democratização brasileira, o que certamente não será alcançado com retrocesso escolar ou violação do direito à Educação.

O Plano Nacional de Educação em tempos de regressão de direitos


Decorridos quase nove anos desde a definição na forma de uma lei sancionada pela então presidenta da República Dilma Rousseff, o Plano Nacional de Educação, ferramenta importante para orientar a política nacional, sofreu, na conjuntura política social e econômica em que se situava, profundos impactos, atingindo perversamente suas diretrizes de universalização do atendimento escolar, de erradicação do analfabetismo, de “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação” e, sobretudo, de melhoria da qualidade da educação (Brasil, 2014).

Efetivamente, no período em análise, especialmente a partir de 2016, o Brasil teve que enfrentar as fortes injunções de políticas de corte conservador sob a batuta de uma ultradireita que desejava, entre outros, uma “escola sem partido”, ensino médio sem disciplinas basilares para uma educação crítica, e que vociferava contra expressões mais elevadas da pedagogia em bases emancipatórias, manifesto em particular pelo desprezo a educadores como Paulo Freire.

Estes foram anos em que o país experimentou polarizações políticas com disputas de monta em torno de um (novo, porque ressignificado) projeto político autoritário – para alguns totalitário, para outros neofascista –, com características de intolerância política e que já era claro em 2013, tendo avançado a partir daí assentado na xenofobia, em agenda econômica neoliberal, com desprezo pela preservação da natureza e pelos mecanismos participativos na agenda pública. Esta direita ressignificada e fortalecida para além do espaço territorial brasileiro portava um repertório de atuação “patriótico”, ou seja, em sua aparência fenomênica ostentava signos de nacionalismo e forte cultura de ódio, particularmente às forças de esquerda e mesmo ao modelo estabelecido de Estado democrático de direito.

O referido repertório, inerente ao projeto político autoritário, atingiu severamente o projeto democratizante e participativo, legado do processo de redemocratização brasileira e das lutas que gestaram a Constituição de 1988, de maneira que a vida pública brasileira vem, nestes últimos anos, atravessada por contradições e modelos ideopolíticos de forte confrontação, gerando dissensos e controvérsias para além dos debates na esfera pública e nas políticas sociais, como a Educação, e mesmo fazendo esgarçar até os consensos em torno de direitos consolidados de alguns públicos, como os negros, as mulheres, e o segmento das Lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros, queer, intersexuais, assexuais (Lgbtqia+), e as classes populares, como é exemplo a ideia de uma “escola sem partido” – leia-se tomando o partido da ordem dominante –, visando, quase sempre, a silenciar a fala das classes e etnias subalternizadas e, por vezes, a impor uma perspectiva cisheteronormativa e racista.

Contudo, nesta disputa política já era por demais conhecido o projeto neoliberal, responsável pela proliferação de um desgaste do Estado como promotor de políticas, tomando-o como perdulário, ao tempo em que exalta o âmbito do mercado como esfera prioritária, favorecendo políticas de exaltação de parcerias público-privadas, de transferência de responsabilidades para a família e para a sociedade civil. As reflexões aqui desenvolvidas não desconhecem, portanto, a força da agenda neoliberal para disputar a política nacional, particularmente no que tange à educação pública, guiando-a segundo os princípios do mercado, algo que vinha se processando desde os anos 1990.

Convém ressaltar que entendo "projeto político" tal como é apresentado por Dagnino et al. (2006, p. 38-44), ou seja, correspondendo ao conjunto de crenças, interesses, concepções de mundo e representações do que deve ser a vida em sociedade, que orienta a ação política dos diferentes sujeitos. Isto envolve entender, seguindo as reflexões dos autores, que há uma heterogeneidade de sentidos nas práticas tanto no interior das instituições públicas que devem viabilizar as políticas sociais quanto no âmbito da sociedade civil, isto é, as disputas atravessam o conjunto da sociedade, de modo que até mesmo instituições gestadas no intuito de garantir o controle sobre as ações públicas em defesa dos direitos podem eventualmente direcionar suas práticas para modelos que os fazem retroceder, como tem sido verificado no Piauí ao estudar-se a atuação do Ministério Público ante as violações de direitos na área de educação básica, atravessada pela lógica de mercado, advindas do projeto neoliberal que enxerga escola como gasto público.

Afinal, decisões no sentido da implementação de políticas ou mesmo omissões que reiteram exclusões de muitos no acesso aos direitos estão diretamente imbricadas aos projetos ideopolíticos e orientações mais gerais da política nos diversos níveis da federação, isto é, governos orientados por perspectivas neoliberais e com foco mais na restrição do que entendem como gasto público e menos na expansão da cidadania em bases democráticas podem incidir em condutas – ações ou omissões – que geram retrocessos nos direitos, como efeito de pouco investimento em fazer valer as diretrizes da política nacional de Educação que estabelece metas a serem cumpridas com vistas a expandir o acesso às escolas e a qualificar a Educação.

Muitas definições na direção neoliberal desconhecem a intricada questão social em que se inserem as famílias pobres e seus discentes de escolas públicas – quando conseguem acessar as escolas –, gerando óbices graves que incidem negativamente sobre os indicadores de acesso à escola, permanência, qualidade do ensino, entre outros aspectos. Refiro-me sobretudo a situações advindas das condições de pobreza de muitas famílias submetidas a trabalho precário e moradias insalubres, muitas vezes sujeitas a um nomadismo frequente em períodos de elevada pluviosidade, quando precisam deixar suas moradias por insalubridade e inabitabilidade. Este fato é frequente no Piauí e, em especial, nas áreas de maior concentração de pobreza de sua capital, Teresina, e isto induz a Defesa Civil a utilizar as escolas públicas para abrigarem pessoas retiradas de suas moradias em função de eventos pluviométricos de grande monta, com prejuízos para a habitabilidade das famílias.

No entanto, o que inicialmente é visto como uma permanência provisória em função da emergência sanitária geralmente se prolonga, enquanto as famílias aguardam respostas dos poderes constituídos, no sentido de lhes garantir uma moradia digna. Estas situações obviamente geram transtornos para os calendários escolares e desalento às famílias. Todavia, em sentido distinto, famílias pobres, sobretudo as ligadas à agricultura familiar, podem sofrer quando as chuvas não vêm, causando a secura da terra, tornada improdutiva, a reproduzir a vida sujeita aos efeitos deletérios da miséria que se reedita, afastando-os de padrões mínimos de justiça social e cidadania.

Assim, nesta realidade plena de desigualdades, eivada de dissensos e prejudicial à implementação da política educacional, ainda ocorreu uma crise sanitária de proporção pandêmica que atingiu gravemente a política educacional no Brasil, gerando retrocessos imensos na educação básica, potencializando as assimetrias regionais, redundando mesmo em efeitos altamente prejudiciais para os diversos níveis de ensino. Sabe-se que o confinamento e o fechamento das escolas tiveram consequências em termos de desestruturação do ensino, e a construção de alternativas em termos de educação em modelo remoto revelou desigualdades sociais gritantes, com acesso desigual às tecnologias informacionais e mesmo inacessibilidade de muitos.

Adicionando-se a este quadro pandêmico, os elementos da conjuntura política brasileira sinalizavam para cortes de recursos para a Educação, orientações conservadoras, regressivas e antidemocráticas de um (des)governo no qual sucederam-se vários ministros e muitas atitudes estranhas ao que deveriam ser as diretrizes desta pasta em um Estado democrático de direito. Assim, a avalanche pandêmica que espalhou mortes foi acompanhada de anos de uma política nacional sujeita a orientações conservadoras e restritivas quanto a uma educação crítica, dada por políticas como o novo ensino médio e por condutas de desrespeito a grandes nomes da Educação, como Paulo Freire, referência no mundo com sua pedagogia em bases críticas, e que, para alguns, teria até mesmo antecipado o que hoje chamamos de pedagogia decolonial (Mota Neto, 2016).

Contudo, passados os momentos mais dramáticos desta avalanche e tendo o governo brasileiro assumido nova direção política, é preciso retomar o curso das políticas dirigidas à Educação, a fim de reparar os danos e retomar, com determinação, as metas necessárias para fazer valer os direitos no campo da educação, retirando-os da guinada em retrocesso, sinalizada pelo Inep no último ciclo do monitoramento do PNE, conforme excerto a seguir.

O Brasil retrocedeu, na cobertura educacional da população de 6 a 14 anos de idade, de 98,0% em 2020 para 95,9% em 2021, o que representa um recuo de cerca de dez anos no indicador, visto que, para 2011, ele foi estimado em 96,1%. O contingente de crianças e jovens fora da escola, em 2021, é estimado em cerca de um milhão, o dobro do que havia em 2020. As regiões Norte e Nordeste foram as mais afetadas, mas todas ficaram, em 2021, abaixo da linha de base do PNE, e houve ainda aumento da desigualdade entre as regiões mais e menos desenvolvidas do País. (Brasil, 2022a, p. 13)

Este é o cenário ampliado de regressão de direitos em que se situa a implementação e monitoramento da PNE, que se configura, obviamente, para além dos efeitos da pandemia. Afinal, embora não haja dúvidas das fortes incidências da crise sanitária sobre a Educação, nem todas as excrescências dos últimos anos se explicam em função da pandemia. Como atesta o Anuário Brasileiro da Educação Básica 2021 (Cruz & Monteiro, 2022, p. 120), ao relembrar a meta no tocante ao financiamento da Educação de:

Ampliar o investimento governamental em Educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do País no quinto ano de vigência do PNE e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio. O investimento público total em Educação, em 2017, foi equivalente a 6,3% do Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, o valor absoluto por aluno na Educação Básica brasileira ainda é consideravelmente inferior ao observado nos melhores sistemas educacionais do mundo. O gasto anual por aluno da rede pública na média dos países da OCDE, na Educação Infantil e no Ensino Fundamental, é 2,3 vezes maior do que o gasto médio por aluno da rede pública no Brasil, nessas etapas. A diferença é de quase cinco mil dólares por ano. [...] [E,] chama a atenção o fato de que, em 2020, mesmo diante da pandemia, estados e municípios reduziram consideravelmente suas despesas em Educação. (Cruz & Monteiro, 2022, p. 120)

Este quadro de profundas desigualdades constitui-se em óbice de grande monta face a tarefa de qualificar a política educacional, entendendo-a enquanto impulsionadora de processos emancipatórios. Todavia, como assevera Cury (2002, p. 169), sendo a distribuição de renda e da riqueza determinante no acesso e na permanência dos estudantes na escola, há que se conferir atenção para não se “exigir da escola o que não é dela, superando a concepção de uma educação salvífica e redentora”, afinal há problemas na escola que não são dela, ou seja, que nelas incidem, mas que a transcendem por se situarem neste quadro mais geral das desigualdades da ordem socioeconômica sob o capital, e, nesta ordem, a convivência dos reclamos da igualdade e da cidadania não convivem pacificamente com a natureza da exploração econômica e social que lhe é inerente. Para Cury (2002, p. 169):

Considerar este contexto socioeconômico descritiva e analiticamente, vê-lo como suscetível de superação por meio de políticas sociais redistributivas e considerar a situação da educação escolar enquanto tal são princípios metodológicos indispensáveis para uma análise adequada das políticas educacionais. Afirmar a determinação socioeconômica sobre a educação não é negar as determinações internas a ela.

Esta reflexão revisita as dez diretrizes do PNE 2014, todas ainda a merecer investimentos para seu alcance no Piauí.

I – erradicação do analfabetismo; II – universalização do atendimento escolar; III – superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação; IV – melhoria da qualidade da educação; V – formação para o trabalho e para a cidadania, com ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade; VI – promoção do princípio da gestão democrática da educação pública; VII – promoção humanística, científica, cultural e tecnológica do País; VIII – estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto (PIB), que assegure atendimento às necessidades de expansão, com padrão de qualidade e equidade; IX – valorização dos(as) profissionais da educação; X – promoção dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade socioambiental. (Brasil, 2022a, p. 12)

As diretrizes preconizadas no PNE guardam estreita relação com os temas-eixos conforme ilustração a seguir.

Figura 1

Temas-eixos da Política Nacional de Educação 2014

Diagram6

Fonte: elaborado pelo autor a partir do PNE (Brasil, 2014).

Como ilustrado, o conjunto de metas em vigor no PNE relacionam-se aos seguintes temas: a) a educação básica; b) a superação das desigualdades e valorização da diversidade; c) a educação superior; d) a formação e Valorização dos Profissionais da Educação; e, e) a gestão da educação e do financiamento.

Por razões específicas relativas ao foco da pesquisa, dirijo atenção especial à educação básica, embora investimentos em todas as outras metas guardem relação estreita com os eventuais avanços ou retrocessos na educação básica, esta que, como lembra Cury (2002), é um conceito definido no art. 21 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (Brasil, 1996) como um nível da educação nacional que congrega, articuladamente, as etapas da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio, tendo como finalidade, conforme o art. 22 da aludida LDB, “desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (Brasil, 1996). Mas, como assevera Cury (2002, p. 170-171), o referido art. 22 da LDB (Brasil, 1996):

[…] a fim de evitar uma interpretação dualista entre cidadania e trabalho e para evitar o tradicional caminho no Brasil de tomar a qualificação do trabalho como uma sala sem janelas que não a do mercado, acrescenta como próprios de uma educação cidadã tanto o trabalho quanto o prosseguimento em estudos posteriores [...] [de forma a indicar como] a mola insubstituível que põe em marcha este direito a uma educação básica, a ação responsável do Estado e suas obrigações correspondentes. Sendo um serviço público (e não uma mercadoria) da cidadania, a nossa Constituição reconhece a educação como direito social e dever do Estado.

Nesta toada analítica, nas páginas seguintes exploro aspectos da realidade da educação básica no Piauí, buscando, à luz do que indicam os números do monitoramento da PNE no Piauí, verificar em que metas houve avanços e no que ainda há muito a ser feito para viabilizar o dever ser da política.

A Política de Educação Básica no Piauí: incremento no acesso ao direito ou retrocesso na política educacional?


O Estado do Piauí, uma das unidades federadas marcadas por indicadores de pobreza e profundas desigualdades, é um estado singular no que concerne à educação básica, na medida em que ostenta, a partir dos dados do monitoramento nacional da política, algumas informações satisfatórias, nos últimos anos, no tocante à proximidade da universalização do acesso à escola e a creches, de crianças na faixa etária de 4 a 5 anos de idade, e, ainda, alguns municípios e escolas vêm apresentando bons resultados em processos que as colocam no patamar de casos atípicos por êxitos específicos. Refiro-me a casos exitosos de estudantes e escolas, como o observado no município de Cocal dos Alves, onde já houve escola agraciada com o Prêmio Darcy Ribeiro da Educação e o Prêmio Ibero-americano de Valores Humanos, notabilizando-se também pelo número expressivo de medalhas em olimpíadas de ensino.

No entanto, em vários outros indicadores, o Piauí se notabiliza por atrasos e mesmo por retrocessos nos indicadores, sinalizando para expressivas violações de direitos, que muitas vezes são denunciadas ao Ministério Público do Piauí para que este interfira no sentido de fazer valer os direitos desrespeitados, gerando, na sua maioria dos casos, medidas extrajudiciais, via recomendações aos gestores municipais e firmamento de termos de ajuste de condutas.

Ao analisar a desigualdade no Estado do Piauí, Pochmann e Guerra (2019, s.p.) estudaram “a diferença da concentração das riquezas entre os municípios 10% mais ricos e os municípios 40% mais pobres” em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), daí chegando à constatação de que “em 2016, os municípios 10% mais ricos concentravam 73,1% das riquezas geradas, enquanto os municípios 40% mais pobres concentravam 6,1% das riquezas geradas”, situação que indica uma elevação da desigualdade. Esta situação não sofreu grandes alterações no período recente, já que em 2002 os municípios 10% mais ricos concentravam 72,9% do PIB e os municípios 40% mais pobres concentravam apenas 6,5% da produção de bens e serviços gerados no Piauí.

Neste sentido, o Piauí é um estado de desigualdades e nele podem ser encontradas escolas dentre os melhores desempenhos educacionais do país, mas também, em trajetória diferenciada, registra-se um baixo desempenho na grande maioria dos municípios, que apresentam baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), analfabetismo significativo, escolas distantes dos locais de moradia dos alunos, que passam a depender do transporte escolar, muitas vezes em face de a própria municipalidade ter fechado a escola próxima, alegando número baixo de matrículas e a necessidade de redução de gastos, entre tantos outros dados que revelam a distância entre o prescrito nas leis enquanto direito à educação e a realidade eivada de contradições e desigualdades.

Na tabela a seguir apresento as quantidades de matrículas e Estabelecimentos da Educação Básica em 2021 das redes públicas e privadas, sinalizando para a expressividade da rede pública, fato diretamente relacionado às condições de pobreza do Estado.

Tabela 1

Piauí: Matrículas e Estabelecimentos na Educação Básica (2021)

Matrículas e Estabelecimentos

Rede Pública

Rede Privada

Total

Quant.

%

Quant.

%

Matrículas

753.970

88,1%

101.427

11,9%

855.397

Estabelecimentos

3.914

90,0%

437

10,0%

4.351

Fonte: Anuário da educação Básica 2021 (Cruz & Monteiro, 2022).

Segundo o Censo Escolar da Educação Básica (Brasil, 2022b), na distribuição das matrículas por dependência administrativa no Piauí percebe‐se a predominância da rede municipal, que detém 62,9% das matrículas. A variação do percentual de matrículas por dependência e etapa de ensino pode ser observada no gráfico a seguir.


Gráfico 1

Piauí: Matrículas por dependência administrativa e etapa de ensino da Educação Básica

Fonte: Censo Escolar da Educação Básica, Relatório Técnico do Piauí (Brasil, 2022b).

Nas tabelas a seguir apresento as metas do PNE 2014-2024 com os respectivos indicadores, relativas à Educação Básica e ao nível de cumprimento destas metas no Piauí (%)3.

Tabela 2

Metas do PNE 2014-2024 relativas à Educação Básica com os respectivos indicadores e Nível de cumprimento destas Metas no Piauí (%)

Metas

Prazo previsto

Indicadores

Piauí (%)

1 – Universalizar a educação infantil na pré-escola e ampliar a oferta de educação infantil em creches de forma a atender, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) das crianças de até 3 (três) anos até o final da vigência deste PNE.

Até 2016

1A – Percentual de crianças de 4 a 5 anos de idade que frequentam escolas/creches.

99,2 % (2016); 99,1 % (2019)

Até 2024

1B – Percentual de crianças de 0 a 3 anos de idade que frequentam escolas/creche.

32,4 % (2019)

2 – Universalizar o ensino fundamental para toda a população de 6 (seis) a 14 (quatorze) anos e garantir que pelo menos 95% (noventa e cinco por cento) dos alunos concluam esta etapa na idade recomendada.

Até 2024

2A – Percentual da população de 6 a 14 anos que frequenta ou já concluiu o Ensino Fundamental.

97,6 % (2021) (*)

2B – Percentual da população de 16 anos com o Ensino Fundamental concluído.

69,5 % (2021)

3 – Universalizar o atendimento escolar para toda a população de 15 (quinze) a 17 (dezessete) anos até 2016 e elevar, até o final do período de vigência deste PNE, a taxa líquida de matrículas no ensino médio para 85% (oitenta e cinco por cento).

Até 2016

3A – Percentual da população de 15 a 17 anos que frequentava a escola ou já havia concluído a Educação Básica.

95,2 % (2021)

Até 2024

3B – Percentual da população de 15 a 17 anos que frequenta o Ensino Médio ou possui Educação Básica completa.

68,0 % (2021) (**)

4 – Universalizar, para a população de 4 (quatro) a 17 (dezessete) anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino, com a garantia de sistema educacional inclusivo, de salas de recursos multifuncionais, classes, escolas ou serviços especializados, públicos ou conveniados.

100% de cobertura até 2024

4A – Percentual da população de 4 a 17 anos com deficiência que frequenta a escola.

76,7 % (2021)

4B – Percentual de matrículas em classes comuns da educação básica de alunos de 4 a 17 anos de idade com deficiência, TGD e altas habilidades ou superdotação.

99,8 % (2021)

4C – Percentual de matrículas na educação básica de alunos de 4 a 17 anos de idade com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades ou superdotação que recebem atendimento educacional especializado.

37,8 % (2021)

Notas:

(*) A taxa de 2019 (antes dos efeitos da pandemia) era 98,1, portanto, superior à de 2021.

(**) A taxa de 2019 (antes da pandemia) era 71,4, portanto, superior à de 2021.

Fonte: Elaborado pelo autor com base no relatório do 4º ciclo de monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação 2022 (Brasil, 2022a).

Embora com previsão para 2016, o disposto na meta 1 que determina a universalização do acesso à escola para as crianças de 4 e 5 anos ainda não se encontrava cumprido em 2019 no Estado do Piauí, último ano ainda antes da crise sanitária. No entanto, pelo ritmo do que indicam os dados do Estado quando observado o desempenho do Piauí, agravado pela crise pandêmica iniciada em 2020, não era possível o cumprimento da maioria das metas, nem mesmo até o fim do PNE, em 2024, de forma que, com a exceção do indicador 1A, que trata do acesso à escola para as crianças de 4 e 5 anos, que apresenta maior probabilidade de ser alcançada em 2024, nenhuma outra meta do Plano Nacional de Educação, da tabela acima, sinaliza para seu cumprimento em 2024 no estado do Piauí.

Os dados acima revelam que a maioria das crianças e jovens no Piauí não consegue frequentar ou concluir a educação básica, devido a inúmeros problemas nas políticas de acesso e permanência nas escolas. É possível demarcar que todas as metas arroladas na tabela anterior estão comprometidas, com alguns agravantes, por exemplo, no caso do indicador 2A, referente à universalização do ensino fundamental para a população de 6 a 14 anos, que em 2019 havia chegado a 98,1% e atualmente retrocedeu para 97,6% (Brasil, 2022a), ou seja, está em situação de retrocesso, implicando violação de direito que precisa ser sanada, em um movimento de reduzir os danos provocados pela pandemia, mas também de enfrentar as ineficiências na gestão e controle sobre os atos públicos que incidem sobre estes desempenhos baixos.

Como informa o Anuário Brasileiro da Educação Básica de 2021 (Cruz & Monteiro, 2022, p. 146), no Piauí, só “30,7% dos alunos da rede pública terminam o Ensino Fundamental com aprendizagem adequada em Língua Portuguesa. No Ensino Médio, são 22,6%”. Na capital, Teresina, estes números são mais satisfatórios, “chegando 50,2% e 31,3%, respectivamente. Além disso, 70 de cada 100 jovens do estado concluem o Ensino Médio até os 19 anos”. O referido anuário também aponta que 31,2% da população do Piauí de 18 a 29 anos de idade não possui o ensino médio completo, taxa superior à registrada no Brasil, que é de 29,5% no mesmo ano (Cruz & Monteiro, 2022).

Conforme o Inep (Brasil, 2022a, p. 111), o monitoramento da Meta 4 enfrenta duas limitações importantes. A primeira é a defasagem temporal dos dados do Censo Demográfico de 2010 utilizados para o monitoramento do Indicador 4A1”; a segunda é de natureza metodológica, na medida em que lida com bases de dados diferenciadas, “uma vez que o censo demográfico coleta informações sobre pessoas com deficiência intelectual e dificuldade ou incapacidade de enxergar, ouvir, caminhar e subir degraus” (Brasil, 2022a, p. 111), e, em contrapartida, “o Censo da Educação Básica, utilizado para o monitoramento dos Indicadores 4B e 4C, identifica as pessoas com deficiência, TGD e altas habilidades ou superdotação” (Brasil, 2022a, p. 111).

No caso específico da meta 5 do PNE (2014-2024), “alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3º (terceiro) ano do ensino fundamental”, o seu monitoramento, conforme atesta o último Relatório realizado pelo Inep (Brasil, 2022a, p. 135), sofreu uma alteração em face de mudanças normativas concernentes à alfabetização infantil e descontinuidade da Avaliação Nacional da Alfabetização a partir de 2017, gerando a adoção de outro instrumento e fonte de dados para garantia do monitoramento desta meta, que passou a respaldar-se “na avaliação do 2º ano do ensino fundamental do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2019” (Brasil, 2022a, p. 135)4. O Saeb, instituído em 1990, é o principal instrumento de análise da qualidade do Ensino Fundamental e do Ensino Médio nas esferas municipal, estadual e federal.

Vale ressaltar que no momento da elaboração do relatório, os resultados do Ideb e Saeb 2021 não haviam sido publicados, de forma que, para o monitoramento desta meta, foi realizada uma adaptação, considerando os indicadores nacionais utilizados nos relatórios de monitoramento anteriores, embora, como indica o relatório, “esses indicadores não sejam comparáveis aos calculados nos ciclos anteriores, uma vez que a avaliação e o ano escolar avaliado foram alterados” (Brasil, 2022a, p. 137). Assim, o monitoramento tomou dois indicadores para acompanhamento da meta 5: o 5A, relativo ao percentual de estudantes alfabetizados até o final do 2º ano do ensino fundamental em Língua Portuguesa no Saeb, e o 5B, para identificar o percentual de estudantes alfabetizados até o final do 2º ano do ensino fundamental em Matemática no Saeb.

No ano de 2019, o estado do Piauí apresentou proficiência média de 744,7 na avaliação do 2º ano do ensino fundamental do Saeb em língua portuguesa e proficiência média de 746,5 na avaliação do 2º ano do ensino fundamental do Saeb em matemática. Convém lembrar que os dados do país indicam que, analisados estes indicadores para o conjunto do Brasil, os dados revelam que a média de proficiência dos alunos em Língua Portuguesa é de 750 pontos, o que corresponde ao nível 5 da escala de proficiência de Língua Portuguesa do Saeb (Brasil, 2022a), de uma escala que vai do nível abaixo de 1 (que equivale a uma proficiência menor de 650) ao nível 8 (maior ou igual a 825). Nesta escala, a proficiência média do Piauí do ensino fundamental do Saeb em língua portuguesa e em matemática indicam o nível 4 desta escala, abaixo, portanto, do nível nacional identificado.

Um outro indicador de avaliação que reforça o retrocesso da educação básica no Piauí é o Ideb, criado em 2007 pelo Inep, a fim de medir a qualidade do aprendizado nacional de forma que possibilite seu monitoramento, sendo calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e das médias de desempenho no Saeb. Os índices de aprovação são obtidos a partir do Censo Escolar, realizado anualmente, e apresentam uma escala de 0 a 10.

No Piauí, mais de 77% dos municípios apresentam índices entre 5,7 a 3,6, abaixo da média nacional de 2021, que é de 5,8, sendo que 15,6% dos municípios do Piauí apresentam retrocesso na nota no Ideb de 2019 quando comparados com a nota alcançada em 2017 (Brasil, 2022a). Neste caso, obviamente o retrocesso não se explica pelo impacto pandêmico na educação.

Segundo Pinto e Brega Filho (2014, p. 3), “o retrocesso na efetivação dos direitos fundamentais pode se dar pela revogação de um direito ou mesmo por uma diminuição que afete a sua essência”. Esta diminuição, em regra, decorre dos interesses políticos com argumentos economicistas de ataques aos investimentos públicos e na tentativa de diminuição da participação do Estado nas políticas sociais.

A seguir apresento o nível de cumprimento do Ideb no Piauí no tocante à meta 7 do PNE, com a descrição da meta e seus indicadores.


Tabela 3

Meta 7 do PNE 2014-2024 com os respectivos indicadores e nível de cumprimento da Meta no Piauí

Metas

Prazo previsto

Indicadores

Ideb

Piauí

7 – Fomentar a qualidade da educação básica em todas as etapas e modalidades, com melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem de modo a atingir as seguintes médias nacionais para o Ideb: em 2015 – 5,2 (EF Iniciais), 4,7 (EF finais) e 4,3 (EM); em 2017 – 5,5 (EF Iniciais), 5,0 (EF finais) e 4,7 (EM); em 2019 – 5,7 (EF Iniciais), 5,2 (EF finais) e 5,0 (EM); em 2021 – 6,0 (EF Iniciais), 5,5 (EF finais) e 5,2 (EM).

Conforme Idebs definidos por ano (na meta).

7A: Ideb dos anos iniciais do ensino fundamental.

5,6 (2021)

7B: Ideb dos anos finais do ensino fundamental.

5,0 (2021)

7C: Ideb do ensino médio.

4,2 (2021)

Fonte: Relatório do 4º ciclo de monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação 2022 (Brasil, 2022a).

O Estado do Piauí se encontra, conforme os dados acima apontados, com índices de educação básica abaixo das médias nacionais, evidenciando não garantir o avanço e nem a preservação dos direitos já conquistados na educação, quando analisados os dados referentes à qualidade na educação.

Conclusões


Neste nono ano de vigência do plano decenal para a educação brasileira, a passagem em revista dos resultados que alcançou o Piauí nesta trajetória permite assinalar a forte desigualdade que marca a Educação no estado, tendo municípios com baixíssimo Ideb e variados problemas, e, em contrapartida, casos atípicos de escolas e municipalidades com destaque nas avaliações e olimpíadas. É óbvio que estudos com foco em dados quantitativos coletados de distintos órgãos, envolvendo uma variada gama de agentes públicos, podem apresentar limites, dado sobretudo pelo olhar panorâmico e o pouco investimento nos aspectos da qualidade da política educacional implementada.

Deste modo, registra-se, como ficou evidente na análise dos dados, que o desempenho do Piauí está aquém das metas, sinalizando mesmo para significativos retrocessos na Educação básica, o que indica grandes desafios na direção de assegurar direitos e reduzir desigualdades, sobressaindo-se na educação básica do estado a oferta pública de matrículas, a sinalizar o registro da pobreza da grande maioria da população.

Este contexto de desmonte da educação básica exige do Estado políticas para melhor acesso e permanência dos estudantes, como medidas estruturais para melhoria da qualidade, uma vez que toda redução e restrição de direitos fundamentais já consolidados configura uma afronta aos preceitos constitucionais, segundo o princípio da vedação do retrocesso.

Embora no embate entre o paradigma do Estado Social de Direito e a nefasta política de um Estado minimalista afeito a um projeto econômico de bases neoliberais, a invocação do princípio da vedação do retrocesso não seja de todo uma garantia de efetivação de direitos educacionais, entendo que poderá constituir uma importante ferramenta de luta pela afirmação e preservação dos direitos de cidadania já declarados e para fazer avançar direitos.

Sabe-se que a natureza do sistema econômico e social produtor de desigualdades, associado aos projetos políticos que, em disputa, refletem a correlação de forças em um dado momento histórico, é o que dá forma aos resultados mais gerais obtidos nas políticas, que sempre convivem com as tensões entre interesses distintos, tendo como horizonte normativo um ordenamento que garante direitos, obviamente não sendo o suficiente para efetivá-los. Daí a relevância de analisar com propriedade os resultados da implementação das políticas, sobretudo para encontrar os ausentes ou apagados, aqueles que a política exclui, segrega ou viola seus direitos, retirando os fetiches encobridores da realidade de forma a permitir enxergá-la em seus avanços, mas sobretudo naquilo que ainda seja necessário fazer para alcançar os propósitos almejados.

Nestes nove anos de PNE, o Brasil experimentou tempos sombrios e desafios hercúleos para fazer valer as suas normativas que asseguram os direitos sociais e as bases democráticas em que se sustenta a ordem política nacional. A luta ainda continua, até porque desigualdades e retrocesso escolar não combinam com aprofundamento democrático.

Referências


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Sobre os autores


Emerson de Souza Farias


Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-0813-3946


Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí (2018). Doutorando do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. Membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Política e Gestão da Educação da Universidade Federal do Piauí. E-mail: adv.emerson@ufpi.edu.br


Masilene Rocha Viana


Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil

https://orcid.org/0000-0001-5357-2780


Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2005). Professora do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Piauí. E-mail: masilene.rocha@ufpi.edu.br



Resumen


Este artículo tuvo como objetivo analizar los resultados alcanzados en Piauí en la Educación Básica a partir del seguimiento del Plan Nacional de Educación (2014-2024), tomando como problema el logro de las metas trazadas en el contexto del avance de la ultraderecha y el las desigualdades del estado. La metodología de la investigación involucró análisis documental y bibliográfico y los principales resultados revelaron desempeños desiguales entre municipios, algunos con indicadores satisfactorios y casos atípicos, mientras que la mayoría se desempeña por debajo de las metas, lo que indica retrocesos significativos en la educación básica.


Palabras clave: Educación básica. Desigualdades educativas. Piauí.



Abstract


This article aimed to analyze the results achieved in Piauí in Basic Education based on monitoring the National Education Plan (2014-2024), taking as a problem the achievement of the goals set out in the context of the advancement of the ultra-right and the state's inequalities. The research methodology involved documentary and bibliographical analysis and the main results revealed unequal performances between municipalities, some with satisfactory indicators and atypical cases, while the majority perform below targets, signaling significant setbacks in basic education. which indicates major challenges towards ensuring rights and reducing inequalities.


Keywords: Basic Education. Educational inequalities. Piauí.




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Referência completa (APA): Farias, E. de S., & Viana, M. R. (2023). Desigualdades e retrocessos na Educação Básica do Piauí. Linhas Críticas, 29, e49211. https://doi.org/10.26512/lc29202349211

Referência completa (ABNT): FARIAS, E. de S.; VIANA, M. R. Desigualdades e retrocessos na Educação Básica do Piauí. Linhas Críticas, 29, e49211, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202349211

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1Pesquisa dirigida para analisar a atuação extrajudicial do Ministério Público na política para a educação básica no Piauí, não se limitando, portanto, ao foco de pesquisa do presente artigo.

2O presente escrito foi produzido, em função de seus limites, conferindo prioridade aos dados resultantes do monitoramento e, portanto, indicando somente alguns dos autores e obras analisadas, tomando-os como pontos de ancoragem da reflexão formulada.

3 As metas 5 e 7 do PNE, embora relativas à Educação básica, não constam nesta tabela em função de seus indicadores não se relacionarem a percentuais, sendo apresentadas a seguir.

4No Relatório do Inep (Brasil, 2022a) podem ser encontrados os fundamentos legais e técnicos para esta redefinição.

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