Dossiê | Escuta e participação nas pesquisas com (sobre) crianças

(In)visibilidade das brincadeiras lúdico-agressivas na educação infantil: compreensões a partir das crianças

(In)visibilidad de los juegos lúdico-agresivos en la educación infantil: percepciones de los niños

(In)visibility of ludic-aggressive play in early childhood education: understandings from children

Raquel Firmino Magalhães Barbosa, Beatriz Pereira


Destaques


Este estudo investigou brincadeiras realizadas na Educação Infantil usando a etnografia enquanto método.


As brincadeiras revelaram um componente lúdico-agressivo nas interações entre as crianças.


Pressupostos da Sociologia da Infância como referencial teórico-metodológico para a compreensão das interações brincantes foram utilizados.


Resumo


Este artigo analisa a (in)visibilidade das brincadeiras lúdico-agressivas na Educação Infantil, em diálogo com pressupostos teórico-metodológicos da Sociologia da Infância. A partir do uso etnografia, com episódios de interação, a produção de dados evidenciou categorias de análise sobre a escuta e a participação infantil: aproximações, registros e diálogos com e entre as crianças. Como resultado, destacamos que as produções culturais infantis para que sejam reconhecidas, necessitam de visibilidade e precisam fazer sentido para que seja possível construir pontes e atalhos com as próprias crianças, a fim de sinalizar que o cotidiano pode revelar uma harmonia a partir das diferenças de olhares, ações e compreensões.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Brincadeira. Brincadeiras lúdico-agressivas. Brincadeiras de luta. Educação Infantil. Sociologia da Infância.


Recebido: 17.08.2023

Aceito: 26.10.2023

Publicado: 13.11.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350496


Introdução


[...] manter visível o que tem tendência a se tornar novamente invisível ou a tornar de novo visível o que já foi descoberto, mas nós havíamos perdido de vista. (Pires, 2008, p. 52)

Estabelecer um diálogo não sobre as crianças, mas com e entre elas, motivou a escrita deste texto, especialmente, quando se trata de pesquisas com crianças e a leitura de seus processos simbólicos. Para tanto, é necessário a busca por confiança, pela liberdade, pelo encontro e pela partilha para mobilizar a promoção de sujeitos ativos e produtores de cultura, frente ao adultocentrismo ainda presente nos processos pedagógicos.

A Sociologia da Infância concebe a condição social e a afirmação das culturas infantis no cotidiano das crianças como um processo de socialização intergeracional e uma maneira de dar voz às crianças, construindo, assim, com a busca por avanços nas relações democráticas nas pesquisas (Fernandes & Sarmento, 2023).

Os pressupostos da Sociologia da Infância que esse estudo se identifica remetem à visão das crianças como atores sociais e cidadãs de pleno direito, na qual a corrente compreensiva ou interpretativa ganha destaque. Apoia-se no entendimento das crianças “[...] a partir do que elas mesmas fazem, no modo como elas agem, das interações que estabelecem, dos processos culturais que elas constroem dentro das suas interações sociais com outras crianças e com os adultos” (Sarmento, 2023, p. 95).

É nesse cenário que a função social da Educação Física na Educação Infantil apresenta relevância, com o debate sobre as contribuições específicas sobre práticas corporais, na construção do currículo e nas mediações pedagógicas realizadas por profissionais com formação específica nessa área de conhecimento (Mello, Bersch, Ribeiro & Martins, 2021).

Nessa perspectiva, a maneira como se produziu os dados com e entre as crianças será o foco deste artigo. Isto é, metaforicamente, a utilização de uma “lupa metodológica”, enquanto algo que possa ver de perto todos os detalhes, procurando ampliar a visão dos acontecimentos, possibilitou observar, acompanhar e acessar as crianças e suas lógicas, como também sugere a epígrafe deste texto. O ponto central se manteve em uma escuta atenta e participativa para o reconhecimento de brincadeiras, resultando no sobressair de suas vozes.

No decorrer dos estudos sobre as brincadeiras de luta, Barbosa (2018) aprofundou suas questões a partir das lógicas infantis para compreender como as crianças brincavam entre si e como exploravam suas criatividades e realidades de forma lúdica e, ao mesmo tempo, agressiva.

A partir disso, foi possível chegar a um entendimento de que as brincadeiras lúdico-agressivas são disputas ou confrontos de natureza simbólica e corporal, que evidenciam a prevalência de elementos lúdicos, em conjunto com a busca de excitação, de poder, de agressividade, de combate, de nonsense e de transformação. A autora percebeu que ao deixar as crianças se expressarem, elas poderiam revelar compreensões sobre a (in)visibilidade de suas ações brincantes1.

Essas invisibilidades, para Qvortrup (2014, p. 25), estão relacionadas com a negação ou com a resistência em reconhecer, garantir e oportunizar as crianças de serem vistas e escutadas por meio de seus próprios interesses e vozes. Para o autor fica uma indagação: “[...] elas têm sido invisíveis ou insuficientemente visíveis até agora?” Ao mesmo tempo que Pires (2008) ressalta que a invisibilidade pode ocorrer, também, por excesso de visibilidade. Os adultos se acostumam tanto a ter obrigações de cuidar e de proteger, que acabam entrando em um conflito em considerar a brincadeira como um problema. E, as crianças, por sua vez, se veem também em um conflito entre ansiar por descobertas, ao mesmo tempo, que desejam que os adultos compreendam suas imaginações e lógicas brincantes. Por isso, as crianças agem camufladamente como um mecanismo de defesa para se esconder e não serem punidas. Daí, a ambiguidade no termo (in)visibilidade.

A partir desse cenário, o texto foi guiado pela seguinte questão: como tornar a visibilidade das brincadeiras lúdico-agressivas potencializada por meio da metodologia desenvolvida com as crianças?

Compreendendo as crianças como participantes ativos na construção social de suas infâncias, estudadas por si e atores sociais de pleno direito, Vasconcelos (2015, p. 32) explica sobre o interesse e a possibilidade de escuta e de participação como um convite:

[...] a participação é um convite e que acontece pela acolhida ao outro. As crianças convidam a colher outros pontos de vista diferentes. Convidam a ter paciência, escutar, dar espaço para quem se expressa de forma peculiar. Participação é dar tempo para pensar sobre o que foi discutido, mas é também voltar a falar sobre o que antes foi dito.

Diante disso, por meio da etnografia, o objetivo deste texto é analisar as brincadeiras lúdico-agressivas em diálogo com pressupostos da Sociologia da Infância, estabelecendo pontes com outros autores, a fim de colocar em evidência a intencionalidade de práticas de escuta e de participação nas pesquisas com crianças e suas produções culturais em momentos ativos em aulas de Educação Física e no recreio na Educação Infantil, a partir de suas próprias compreensões.

Metodologia


Este texto utiliza pressupostos da Sociologia da Infância como referencial teórico-metodológico e tem a etnografia como método de pesquisa qualitativa para compreender as brincadeiras lúdico-agressivas na Educação Infantil.

Empregar pressupostos da Sociologia da Infância como referencial teórico-metodológico é reconhecer a participação das crianças nas rotinas culturais como método e a leitura das práticas sociais para acessar o conhecimento em suas interações como direito delas em seus aspectos teóricos (Corsaro, 2011; Fernandes & Sarmento, 2023; Sarmento, 2023).

Essa área de estudo também estabelece articulações com outros autores, permitindo a diversificação do conhecimento, com correntes e abordagens teóricas inter/multidisciplinares que permitem um olhar global e holístico da criança e da infância (Fernandes & Sarmento, 2023). Por isso, a articulação com outros autores, de outras frentes de conhecimento, é trazida para o diálogo com os estudos da criança, em uma abordagem dialógica, a partir de semelhanças e diferenças (Sarmento, 2023).

Já a etnografia no espaço escolar implica um esforço em busca de pistas para se compreender não só o cotidiano como seus atores sociais. Corsaro (2011) ressalta a importância da etnografia para a Sociologia da Infância, por se tratar de um método que leva em consideração a captura de eventos, de ações e de compreensões dos próprios sujeitos sobre o que faz parte do ambiente pesquisado.

Para tanto, utilizou-se como recursos metodológicos a inserção de registros em diário de campo, a partir de observação participante, entrada reativa, narrativas, enunciações, estratégias de reflexividade e feedbacks das crianças em episódios de interação (Sarmento, 2023; Marchi, 2018; Certeau, 2014; Corsaro, 2011; Pedrosa & Carvalho, 2005).

A produção de dados2 ocorreu durante o recreio e em aulas de Educação Física de uma escola pública de Educação Infantil, em Vitória/Espírito Santo (ES), Brasil. Os sujeitos foram 30 crianças, de duas turmas de 5 anos de idade da Educação Infantil. Nesse contexto, a análise da produção de dados evidenciou as seguintes categorias sobre a escuta e a participação infantil: aproximações, registros e diálogos com e entre as crianças.

Aproximação: primeiros contatos com as crianças


A aproximação com o mundo imaginário da criança e a tentativa de compreensão de seus comportamentos, de suas relações sociais e de suas linguagens podem fornecer novas formas de observar a ação brincante, os ritos e a capacidade criadora, principalmente, quando devaneiam sobre o seu mundo simbólico. Para conseguir uma aproximação da realidade e das experiências produzidas pelas crianças, foram utilizadas técnicas de pesquisa como a observação participante e a entrada reativa.

A “observação participante” consiste em captar, registrar, interpretar os dados e, acima de tudo, ter uma postura reflexiva sobre o que se pesquisa para compreender os sujeitos e suas relações em seus contextos culturais (Marchi, 2018, p. 731). Na observação participante, as crianças se tornam sujeitos e não objetos da pesquisa, com papel importante, sobretudo, na interpretação dos dados, colaborando com o estudo (Sarmento, 2023).

O método de “entrada reativa” propõe que o pesquisador entre no ambiente investigado e aguarde as crianças reagirem a sua presença para que as interações entre eles se estabeleçam, a partir da ação ativa e curiosa delas nesse contexto (Corsaro, 2011, p. 64).

Essas duas técnicas se complementam para fundamentar a pesquisa na perspectiva de ser com e entre as crianças, bem como proporcionar uma observação “de dentro” do cotidiano, possibilitando que o foco recaia nas relações, nas práticas concretas e na produção de sentidos das crianças, além do reconhecimento do pesquisador como membro do contexto social investigado.

Desse modo, mesmo com a escolha por uma posição neutra diante das crianças, não demorou muito para elas perceberem a assiduidade de um adulto diferente nos espaços da escola que elas frequentavam. Assim, surgiram os primeiros olhares e, em seguida, perguntas do tipo: “quem é você?”, “você é professora também?”, “o que você está fazendo?”, “qual é o seu nome?”, “para de escrever, tia, olha eu!”, “você mora no parquinho?” e “está aqui de novo, tia?” (Alunos, 5 anos de idade, Educação Infantil). Isso permitiu as primeiras conversas, entendimentos sobre a pesquisa, o acolhimento pelas crianças e o reconhecimento de status de participante no grupo (Corsaro, 2011), como exposto no relato a seguir:

Enquanto eu observava as crianças na aula de Educação Física, algumas delas se aproximaram e me fizeram várias perguntas a respeito da minha presença na escola: você é professora? O que você está fazendo aqui? O que você está escrevendo nesse livro? Em meio a tantas perguntas, tentei respondê-las, de forma que entendessem a razão da minha presença: sim, sou professora, mas, também, sou pesquisadora. Vocês sempre vão me ver na escola (...) eu escrevo nesse livro [era um pequeno caderno] o que vocês estão fazendo. Logo, uma menina me interrompeu: mas o que uma pesquisadora faz? E eu respondi: observa e anota tudo que vocês estão brincando. Ela começou a rir e falou: você tem que estar aqui toda hora! (Ariel, 5 anos de idade, Educação Infantil).

Conforme ocorreu no episódio, a curiosidade infantil tomou conta da conversa com as crianças e foi o ponto-chave para a pesquisadora informar sobre a pesquisa e o assentimento sobre a participação delas na pesquisa. A permissão de entrada no campo e a aceitação delas na pesquisa surgiram de uma maneira fluida e com uma explicação que as crianças compreenderam. Marchi (2018) ressalta que ao iniciar a entrada reativa, do ponto de vista ético, é relevante o pesquisador se apresentar para as crianças e falar sobre sua presença no ambiente pesquisado para que elas compreendam o que ele pretende realizar (a pesquisa) e como vai realizar (observação participante e registros diversos).

Assim, a aceitação da presença do pesquisador nos “lugares praticados” pelas crianças (Certeau, 2014, p. 184) – (re)apropriados e (re)significados por elas – bem como os registros de episódios e a própria contribuição infantil, com suas narrativas, sobre a sequência de acontecimentos produzidas nas brincadeiras, permitiu que a pesquisadora se tornasse um “adulto atípico” no terreno das crianças durante a pesquisa, percorrendo e convivendo em atividades que dificilmente circulariam pais e professores (Corsaro, 2011, p. 64). Um exemplo foi o convite feito pelas crianças para a pesquisadora participar em uma de suas brincadeiras, materializadas em um episódio observado em um momento de pátio com a turma:

Enquanto eu observava as crianças, algumas notaram que eu estava atenta ao desenrolar da brincadeira, porém, não foi motivo de finalizá-la e nem de se sentirem constrangidas, pelo contrário, continuaram a brincar e cada vez mais próximas a mim. Percebi que estavam brincando de um tipo de “pique zumbi-robô”. Era uma correria. Um dos meninos andava vagarosamente com os braços para frente, de olhos semiabertos e falava igual a um robô. E os outros fugiam dele em direção à parede, lutavam entre si ou se escondiam entre os brinquedos do pátio. Em uma situação inesperada, uma criança se dirigiu a mim e gritou: Tia, me salva! Ela estava me chamando para entrar na brincadeira, prontamente aceitei. Perguntei: como posso te salvar? A criança falou: chama ele, aí, eu vou correr para lá, apontando para a parede. Entrei no jogo e falava: ai que medo, vem me pegar, Seu Zumbi! As crianças morriam de rir, fugiam e encostavam-se à parede. Havia algumas regras como cruzar os dedos. Perguntei: por que você está mostrando seus dedos cruzados para o zumbi? Uma menina respondeu: assim, ele não pode pegar a gente. O zumbi continuava a andar procurando as crianças. Algumas fugiam, outras lutavam com ele e outras denunciavam onde os outros estavam escondidos. Um deles falava: sobe aqui no brinquedo. Aqui ele não pode subir. Ele não tem roda! E eu falei: eu não posso subir aí, eu sou muito grande. Mesmo assim, eles insistiram. Quando eles pararam de brincar, iniciei uma conversa: de onde vem o zumbi-robô? Um menino respondeu: da morte! Ele é do mal! Eu falei: nossa, mesmo assim você gosta de brincar com ele? E o menino respondeu: sim, eu gosto de brincar de bicho! (Tony Stark, 5 anos de idade, Educação Infantil).

Observar as crianças correndo de um lado para o outro poderia soar corriqueiro, como uma brincadeira de pega-pega. Mas, ao proporcionar o encontro, estar disponível para descobertas, se aproximar, ser aceita e conversar com elas produziram outras relações e sentidos para as falas das crianças. Alves et al. (2022) ressaltam a importância das conversas que aparecem com os cotidianos, como uma possibilidade de acesso a comunicação, as ideias, as experiências vividas, aos ‘espaçostempos’ e a compreensão dos acontecimentos, pois por meio “[...] das conversas que trocamos ‘fazeressaberes’, que aprendemosensinamos’ nos cotidianos” (Alves, Morais, Toja & Brandão, 2022, p. 36), destacando a maneira como os atores sociais conseguem se expressar com seus sentidos holisticamente.

E, assim, foi possível compreender que, por trás das brincadeiras eleitas pelas crianças, há uma história: o zumbi-robô dava o toque de nonsense na brincadeira, acompanhado com a excitação, o combate e a transformação, comportamentos descobertos após a conversa estabelecida com as crianças. A aproximação, o aceite, o convite e, ao mesmo tempo, a participação e o registro nos episódios de interação envolveram tanto a pesquisadora, quanto as crianças. Segundo Marchi (2018, p. 731), o que se apresenta é “[...] uma dupla necessidade ou duplo elo a ser atingido: a participação das crianças nas atividades do observador (pesquisa) e a participação do observador nas atividades das crianças”.

Muitos dos conhecimentos brincantes que ocorrem nos espaços da escola se desenvolvem com as crianças. Essas experiências e possibilidades se incorporam nas brincadeiras e no cotidiano escolar, tornando-se visíveis para quem consegue se aproximar de suas imaginações. O episódio a seguir demonstra a espontaneidade de uma criança em revelar interesses e vivências brincantes:

Eu estava observando as crianças em uma aula de Educação Física, quando uma menina se aproximou de mim e começou a conversar: Tia, sabia que a minha mãe me deu uma caixa de porrada. Eu me surpreendi e perguntei: Caixa de porrada? O que tem nela? Ela me respondeu: lá tem umas coisas que fazem a gente bater forte, sabe? A Mulher Maravilha tem um chicote. Ela roda, acerta e luta. Aí, quem bater mais forte ganha! Eu perguntei rapidamente: Você já trouxe essa caixa aqui para escola? A menina respondeu: sim! eu brinco assim com eles (fazendo gestos de luta e apontando para seus amigos de escola), mas a tia não gosta (Diana Prince, 5 anos de idade, Educação Infantil).

Com base nessa narrativa, é possível perceber que a criança incorpora suas necessidades agressivas, misturando com a fantasia que tem lugar de destaque e se materializam em suas criações e brincadeiras. As pistas brincantes deixadas pelas crianças nos conduziu para brincadeiras caracterizadas pela prevalência de elementos lúdicos, de agressividade e de nonsense, o que chamamos de brincadeiras lúdico-agressivas. Conforme a pesquisa avançava, estávamos percebendo que essas manifestações brincantes poderiam ser uma maneira das crianças se expressarem ludicamente e ressignificarem a cultura à qual fazem parte.

As brincadeiras lúdico-agressivas estavam se iluminando e se tornando cada vez mais visíveis, devido à possibilidade da pesquisadora estar mais perto e escutar as crianças. Contudo, Baitello (2005, p. 85) ressalta que “[...] toda visibilidade carrega consigo a invisibilidade correspondente”. O que era visível para a pesquisadora, em uma relação de profundidade, nem sempre seguia a mesma percepção para quem, também, estava observando ou estivesse no mesmo ambiente. Esse olhar e registros mais profundos e iluminados (saído das sombras) só aconteceram por causa da credibilidade das vozes das crianças e do (re)conhecimento do contexto brincante.

É necessário realizar, como afirma Velho (1981), um processo de estranhamento do familiar e de aproximação com o exótico, no sentido de ter um olhar de alteridade para a experiência da criança, que tem muito a nos dizer e a nos ensinar, o que permite construir um olhar mais apurado sobre as ações familiares, excêntricas, conhecidas ou desconhecidas presentes no cotidiano das micro práticas infantis na escola. Para o autor:

O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido. No entanto estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente (Velho, 1981, p. 5).

Nesse sentido, a visibilidade se aproxima de algo proeminente e que necessita de credibilidade para ser consumido e compartilhado. O olhar sensível da pesquisadora fez toda a diferença para (re)conhecer os interesses infantis. No entanto, os outros adultos, por terem o olhar focado no cuidar e em evitar que as crianças se machuquem ou que algo saia do controle, nem sempre possuem a mesma percepção sobre as brincadeiras lúdico-agressivas, gerando perspectivas superficiais e fragmentadas das ações brincantes. Frases como “[...] a tia nunca gosta que a gente brinque assim e bota de castigo” e “[...] a tia vai brigar com ele porque ele tá lutando” (Alunos, 5 anos de idade, Educação Infantil), talvez aconteçam por falta de conhecimento do adulto sobre o que as crianças pensam e brincam, tornando o entendimento das brincadeiras lúdico-agressivas (in)visibilizado.

Assim, a partir da experiência com as crianças, a aproximação foi fundamental para termos a oportunidade de ouvir suas vozes e de ir além de “[...] dar (conceder, permitir) voz” a elas (Marchi, 2018, p. 729). Isso permitiu o reconhecimento da visibilidade de suas lógicas, curiosidades, imaginações e experiências vividas com as brincadeiras lúdico-agressivas.

Registro: dinâmica da interação entre as crianças nos espaços brincantes


Com o objetivo de captar as vozes das crianças e suas experiências brincantes no decorrer da permanência da pesquisadora em aulas de Educação Física e no recreio, buscou-se “[...] formas de ouvi-las, explorando as suas múltiplas linguagens, que têm como pressupostos a crença de que elas têm o que dizer e o desejo de conhecer o ponto de vista delas” (Cruz, 2008, p. 13). Para tanto, a produção de dados foi registrada em diário de campo, sobretudo, por meio de narrativas, de enunciações e de estratégias de reflexividade no convívio com e entre elas.

No diário de campo descreveu-se qualitativamente os dados em “episódios de interação” (Pedrosa & Carvalho, 2005, p. 432). Buscamos narrar, detalhadamente e ordenadamente, a trajetória dos acontecimentos, focalizando os elementos que integraram a construção de experiências significativas, produzidas pelas crianças, em seus momentos brincantes.

As “narrativas” foram conversas produzidas e/ou induzidas pela pesquisadora para a produção de conhecimento nas múltiplas tessituras do cotidiano (Alves et al., 2022, p. 37). Segundo as autoras, narrar o cotidiano é comunicar sons de diversos tipos, imagens, criações, uma abertura aos sentidos e incorporações de conhecimentos e significações.

As “enunciações” (Certeau, 2014, p. 164) também apresentaram um papel relevante dentro da pesquisa, pois se captou a “fala em ato”. Isto é, os diálogos que surgiram durante a brincadeira foram frutos da interação entre as crianças. Tanto as interações como “fazer com” os outros praticantes do cotidiano originaram linguagens verbais e não verbais, ao mesmo tempo, criativas, ordinárias e banais.

E as estratégias de “reflexividade metodológica” (Marchi, 2018, p. 739), durante a produção de dados da pesquisa, permitiu uma consciência externa sobre a observação da própria pesquisadora que observa as crianças como uma estratégia de reflexão sobre a sua presença e o conhecimento crítico a respeito da escuta das vozes das crianças e a recusa pelo adultocentrismo.

Foi a partir desses aspectos metodológicos que houve a possibilidade de extrair da sombra a luz que iluminava as brincadeiras lúdico-agressivas em seus modos de vida. O inerente conflito entre a visibilidade e a (in)visibilidade, entre a brincadeira e a briga, entre a ludicidade e a agressividade, entre a percepção do adulto e da criança se encontram na superação das dominações intergeracionais (Fernandes & Sarmento, 2023).

Nessa perspectiva, é possível perceber a relevância da realização de reflexões contínuas sobre o campo e os dados, a fim de utilizar estratégias mais apropriadas para captar as brincadeiras, a inventividade e o protagonismo infantil. Um exemplo pôde ser constatado por meio de um diálogo estabelecido entre a pesquisadora e um grupo de crianças:

As crianças estavam se reunindo para brincar quando chamaram a minha atenção: tia, filma a gente aqui! A gente está brincando de monstro. Me juntei a elas e iniciei a gravação e falei: vou filmar e depois quero que vocês me contem tudinho o que vocês fizeram, hein! Antes de irem para o refeitório, eu perguntei ao grupo: o que foi que vocês estavam fazendo lá? Fui interrompida por um menino, questionando: cadê o vídeo, tia? Vem ver, ela filmou a gente brincando, aquela parte, ela gravou! [...] a gente estava brincando de monstro que luta e pega todo mundo [...] (Clark Kent, 5 anos de idade, Educação Infantil).

Nesse episódio, o cotidiano das crianças estava sendo visualizado e compartilhado com seus pares e aberto para um adulto. Obtivemos acesso aos seus conhecimentos e lógicas quando elas se tornaram “repórteres” de suas próprias ações brincantes e “grandes ajudantes” da pesquisa, como Corsaro (2011) as denominou. Para o autor:

As crianças também podem participar como assistentes de pesquisa e informantes, ajudando os pesquisadores adultos com entrevistas e com noções básicas sobre suas culturas, bem como em relação à análise dos dados. Assim, as crianças se tornam coprodutoras dos dados e das conclusões (Corsaro, 2011, p. 68).

É essencial reforçar a presença e o papel das crianças como colaboradoras da pesquisa, no que diz respeito ao registro e a captação de suas vozes, ao reconhecimento de suas ações e de suas (re)significações. Por isso, a importância de realizar uma pesquisa não sobre crianças, sobretudo, com e entre elas (Rocha, 2008), para que sejam vistas como atores sociais no mundo em que vivem e protagonistas e repórteres das suas experiências e entendimentos. Nessa linha, o episódio seguinte se desenvolveu reafirmando as produções de sentido sobre as brincadeiras lúdico-agressivas:

Perto do brinquedo do pátio estava um grupo de meninos, observei que eles corriam, lutavam, soltavam poderes e atiravam em quem estivesse na frente deles. Ora davam chutes na parede como se fosse alguém, ora chutava a parede para pegar impulso e chutar o ar. De onde eu estava, escutava frases como: ele te acertou! você morreu! deita, não pode levantar agora, tem que esperar um pouco para voltar a lutar! Enquanto isso, os outros trocavam socos e chutes, nem sempre no ar. Daqui a pouco, começaram a se jogar em cima daquele que estava deitado. A professora viu e mandou parar. Eles, de fato, pararam de subir naquele momento. Saíram da direção do olhar da professora e começaram a fazer a mesma coisa em cima de outro menino, agora, dentro de uma casinha de brinquedo que fica no pátio da escola, longe do olhar da professora (Alunos, 5 anos de idade, Educação Infantil).

O episódio ressalta que, talvez, não seja necessário que os sujeitos brincantes digam, de fato, alguma coisa. Simplesmente, movimentos, comportamentos e relações falam por si para expressarem suas vontades de brincar. O que foi percebido é que conforme a pesquisa avançava, as narrativas das crianças se moldavam em um contexto de enunciação como algo “[...] que não pode ser dito nem ensinado, mas deveria ser praticado” (Certeau, 2014, p. 149). Melhor dizendo, ações verbais e não verbais contextualizadas e apropriadas de sentidos pelas crianças. Isso pôde ser observado no episódio a seguir:

Em um momento de recreio, percebi que as crianças estavam construindo uma brincadeira com vários personagens de desenhos animados da “Liga da Justiça” e dos “Vingadores”. Cada um escolheu o seu personagem preferido. Alguns meninos entraram na casinha e um dos meninos se posicionou na porta, com as pernas afastadas e com os braços abertos, impedindo que outras crianças entrassem no local e desafiava quem tentasse empurrá-lo: Não pode entrar! Os heróis estão aqui! Só vai passar se você conseguir! Alguns tentaram, empurraram o menino, mas logo desistiram, preferiram ficar de espectadores, olhando pela janela da casinha do pátio da escola. Enquanto isso, dentro da casinha, os meninos formavam duplas e lutavam de um tipo de UFC de super-heróis. E as crianças de fora torciam e incentivavam a brincadeira. Se ouvia gritos como agarra! acaba com ele! ele ganhou! não, deu empate! A luta continuou até alguém desistir de brincar. O motivo da desistência foi o extremo cansaço. Nenhum adulto/professor percebeu o ocorrido, somente a pesquisadora (Alunos, 5 anos de idade, Educação Infantil).

Aparentemente, para quem estivesse de fora, sem saber o contexto brincante, poderia notar que havia uma grande algazarra dentro da casinha: com gritaria, muitas crianças juntas se agarrando e fazendo chutes e socos para todo lado. Sabemos o quão sutil é a linha tênue que separa a brincadeira do desentendimento entre as crianças, porém, o diálogo brincante mostrou uma “harmonia conflituosa” perpassando a brincadeira (Maffesoli, 2012). Este conceito, para o autor, se configura por uma busca de equilíbrio e de ajustamentos de elementos heterogêneos, que na vida social é manifestada por formas e expressões que transitam entre a harmonia e o conflito, revelando um “desejo de evasão” que compõem a efemeridade do cotidiano.

Se imaginarmos essa cena como um mosaico, é possível perceber que há uma coerência no todo, mas, ao mesmo tempo, há, também, uma configuração própria. Assim, para Maffesoli (2012), nesse exemplo, pode haver uma harmonia conflituosa, a partir das diferenças. Na correria das aulas e no tempo do recreio, os acontecimentos brincantes para os professores e adultos que acompanham as crianças podem ter outros efeitos e outros olhares.

Como lidar com isso na escola? Para as crianças pode ser coerente brincar assim, mas para o adulto não? Por que esse tipo de manifestação brincante é tão rechaçado na escola? A saída seria inviabilizar as brincadeiras lúdico-agressivas com punições? Ou dar espaço para escutar, ouvir e ver o que as crianças têm a nos dizer? Maffesoli (2012) se aproxima de aspectos da Sociologia da Infância quando compreende que as crianças precisam ser ouvidas, valorizadas e terem seus saberes reconhecidos. Isso é bem diferente de uma educação vertical, que tornam brincadeiras e mundos simbólicos invisibilizados, devido as crianças estarem na contramão das regras impostas pelo adulto.

Desse modo, compreender o cotidiano das crianças, a partir dos jogos e brincadeiras pode se tornar uma maneira de alcançar a criatividade, a produção de sentidos e a (re)invenção do cotidiano pelas crianças em suas brincadeiras.

Diálogos: feedbacks das experiências brincantes


Para estabelecermos um diálogo com e entre as crianças, nos voltamos para a leitura do cotidiano e o que poderíamos interpretar a partir dele, com elas, por considerar que não podemos separar a descrição presente nas práticas brincantes, do modo como elas percebem o contexto social em que vivem.

Dessa maneira, foi essencial ir além das observações e registros feitos pela lente do adulto. Foi preciso dialogar com as crianças e saber diretamente seus feedbacks e suas próprias percepções sobre as brincadeiras lúdico-agressivas nas interações.

Nessa perspectiva, para Barbosa (2018), os “feedbacks” ocorreram a partir de registros fotográficos e gravações de áudio e de vídeo como uma forma de complementar as narrativas e as enunciações, e captar detalhes de diálogos verbais e não verbais entre as crianças e/ou com quem interagissem com elas. Aliado a esses recursos, foram apresentados os mesmos registros para as crianças para que elas pudessem nos contar suas próprias histórias. Suas impressões sobre as brincadeiras foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritos para o diário de campo. A partir da interpretação com as crianças, o episódio a seguir se desenvolveu:

Um grupo de meninos e meninas brincavam com uma mistura de pega-pega, luta e, ao mesmo tempo, procedimentos policiais (colocar alguém de frente para parede e fazer revista). Juntamente a isso, era possível escutar frases como: a polícia vai invadir! vai começar o tiroteio! Além de socos e chutes no ar e posicionamentos de armas com as mãos e sons de tiro. Após um momento de dispersão, fiz algumas perguntas a uma das crianças envolvidas na brincadeira: vocês estavam brincando de quê? Rapidamente, o menino me respondeu: de arminha, de policial e bandido... de pular em cima do outro e de lutar... Curiosa com o andamento da conversa, questionei: o que acontece quando todo mundo corre? Um dos meninos disse: a gente estava brincando de guerra. É o bandido tentando pegar a polícia (...) A gente atira e luta com eles! (Peter Parker, 5 anos de idade, Educação Infantil).

O episódio evidencia contextos violentos de cenas do cotidiano que as crianças vivenciam e seus interesses lúdico-agressivos com lutas, guerras e corre-corre. Mas essa produção de conhecimento só foi conhecida após recebermos seus feedbacks. Isto é, ao escutar, dialogar e compreender o contexto com elas após a brincadeira. Isso proporcionou outra percepção sobre seus comportamentos e mundos simbólicos e, então, tudo mudou de figura: havia muito mais que comportamentos considerados agressivos. Havia uma brincadeira agonística e, também, historiada, com ritos, regras, nonsense e, por incrível que pareça, com riscos controlados pelas próprias crianças.

Com esse entendimento, as crianças nos ajudaram mais uma vez: se desenhava uma engenharia brincante que constituía a brincadeira, como uma maneira particular da criança construir uma lógica própria em suas ações brincantes. Por meio da organização da brincadeira, da interação, da criação, da relação entre os pares, do respeito às regras do jogo, da escolha dos temas, dos personagens e das funções, a engenharia brincante produziu formas de expressividade, contextos e lógicas (Barbosa, 2018). O episódio abaixo retrata essa construção:

Durante a aula de Educação Física, vi que tinham alguns meninos brincando diferente da proposta da professora. A professora estava ministrando uma aula direcionada para um circuito e algumas crianças após passarem a primeira vez, se dispersaram e começaram a brincar perto da fila. A professora ao mesmo tempo que conduzia a aula, também pedia para essas mesmas crianças retornarem para a atividade e pararem de brigar, mas as crianças continuaram. Em um dado momento da aula, perguntei sobre o que eles estavam fazendo. Um dos meninos me respondeu: Eu estou brincando de Homem de Ferro. Ele tem uma armadura. Você tem que botar a armadura, fingir que está voando e mata os vilões invisíveis. A minha armadura é vermelha e a dele é amarela, tá vendo? Aí, é só lutar com eles! (Bruce Wayne, 5 anos de idade, Educação Infantil).

Captar um episódio como esse permitiu confirmar e/ou descobrir ações observadas e (in)visibilizadas nos ambientes da escola. No entanto, por meio do feedback das crianças envolvidas no episódio de interação, suas vozes (re)significações e apropriações brincantes foram evidenciadas.

Para Neto (2020), é necessário dar liberdade para as crianças para que se confrontem com o risco e não fiquem cerceadas a todo o tempo. Para o autor, a ausência de tempo, a superproteção e a falta de autonomia para as crianças geram um “terrorismo do não”. Ou seja, os adultos para tudo dizem não, sem dialogar com o que está acontecendo com as crianças. Neto (2020) acrescenta que brincar é colocar o corpo em confronto com o risco, com a natureza e com o imprevisível. Para ele, isso é uma forma de aprendizagem. Uma atitude proativa do professor de se aproximar do mundo lúdico das crianças poderia render muito mais conhecimentos do que planejamentos fixos, que não levam em consideração os interesses infantis.

Ações como operar com as crianças, desconstruir a sala de aula para aprender com elas, proporcionar ambientes para que se confrontem com o risco controlado, trabalhar cooperativamente para criar brincadeiras, oportunizar ambientes de expressão com liberdade de criação, provocar a curiosidade delas, dar liberdade de aprender com seus pares, além de oferecer tempo livre para a criança ser criança e brincar podem transformar as aulas e motivá-las muito mais. O circuito proposto pela professora poderia ter um envolvimento e um engajamento muito maior se, por exemplo, o cenário e o enredo tivessem sentido para as crianças.

Baseado nessas perspectivas, por meio das brincadeiras lúdico-agressivas, as crianças nos fazem visualizar seus protagonismos. Ao valorizarmos a autoria delas e suas produções infantis, não estamos eximindo o adulto de suas funções pedagógicas. Não desconsideramos a mediação do professor e a sua atuação nesse contexto de mostrar o mundo à criança por meio de atividades direcionadas. Contudo, a ideia de tornar visíveis as brincadeiras lúdico-agressivas é demonstrar que as fantasias e os interesses infantis também podem ser uma forma de expressividade infantil. O episódio abaixo retrata uma brincadeira desenvolvida entre as crianças no recreio:

Um grupo de seis meninos estavam brincando perto da casinha do pátio da escola na hora do recreio. Eles corriam, fugiam, lutavam e, depois, voltavam para a casinha, levando alguns meninos, presos com suas mãos para trás. Lá dentro, eles corriam, pulavam um em cima do outro e lutavam. Também pegavam folhas de árvores que estavam no pátio, levavam para a casinha e saiam correndo. Percebi que havia alguns meninos que faziam revistas e tiravam folhas dos bolsos de alguns deles e, ainda, os prendiam nos postes que seguram o toldo do pátio. Assim que eu tive oportunidade, perguntei sobre o que estavam brincando. Um deles me respondeu: é de polícia e ladrão e de guerra. A gente tem que roubar as coisas. Aí, os policiais vêm atrás da gente. Perguntei: o que vocês roubaram? Outro menino me respondeu: dinheiro [as folhas]. Aqui é o cofre [a casinha]. No meio da “brincadeira de guerra”, como eles mesmos disseram, se escutava: rápido, pega tudo! a polícia vai invadir! corre, a polícia está vindo! esconde o dinheiro todo, vai! e barulhos de tiro (pow-pow) (Alunos, 5 anos de idade, Educação infantil).

Para alguns adultos, presenciar as crianças brincando de polícia e ladrão pode ser algo problemático, talvez por estimular a violência e comportamentos agressivos. No entanto, não podemos esquecer que também é uma brincadeira popular, que faz parte do rol de manifestações brincantes das culturas infantis.

É necessário buscar uma leitura sensível para as ações empreendidas com as crianças e a sua engenharia brincante. Isto é, reconhecer a visibilidade das brincadeiras lúdico-agressivas e suas diversas formas de expressão a partir do olhar e da compreensão da criança. Oliveira (2018, p. 137) destaca que:

[...] é necessário que o professor compreenda que existem outras formas de ver e perceber a realidade e que ele precisa estar sensível para as diferentes dimensões desse real. O olhar sensível o aproxima do processo de autoconhecimento que o leva a identificar que ponto nos encontramos nessa percepção, identificado nosso sentir e não sentir, nossos limites e potencialidades, e assim, perceber pela sensibilidade que somos humanos e que estamos imersos em situações e problemas sócio-históricos, político-culturais, éticos dentre outros de dimensões humanas, sendo esse um olhar inovador para os cenários educativos.

Isso é dar significado à produção de conhecimento infantil, oportunizando explorar o que elas veem, vivenciam, criam e compartilham em momentos de aula e de recreio. Também pode fomentar uma leitura dos processos simbólicos. Para Carmo (2022, p. 59), “[...] estabelecer um diálogo implica um esforço de convergência, de encontro e busca de denominadores comuns, de uma plataforma mínima de entendimento e compreensão mútuas”.

A partir dos estudos de Charlot (2000) e da transposição teórica para os estudos da criança, destacamos o entendimento que o autor lança para as crianças que não apresentam comportamentos esperados que a escola exige, sugerindo uma compreensão diferenciada para esses sujeitos brincantes, sabendo que são seres sociais, singulares e plurais ao mesmo tempo. Isso significa que “[...] não é apenas, nem fundamentalmente, perceber conhecimentos adquiridos ao lado das carências, é ler de outra maneira o que é lido como falta pela leitura negativa” (Charlot, 2000, p. 30). É preciso questionar afirmativas, isto é, ter uma postura epistemológica e metodológica sobre a relação da criança com seus pares e seus comportamentos brincantes, a fim de compreender o processo que leva à brincadeira, de modo contextualizado, para que a brincadeira possa ser visualizada e compreendida.

Portanto, o reconhecimento das crianças como sujeito produtor de conhecimento foi essencial para que pudéssemos conhecer o que está envolvido nas brincadeiras lúdico-agressivas. Com a observação, o registro e a troca de experiências com e entre elas, foi possível captar saberes, significações e práticas (in)visíveis e compreender as experiências brincantes vivenciadas no cotidiano escolar.

Considerações finais


Ao analisar as brincadeiras lúdico-agressivas, foi possível oportunizar às crianças protagonismo ao oferecer espaço para se expressarem, tornando essa manifestação brincante visível e potencializando a descoberta (antes encoberta) sobre práticas (in)visíveis na escola. Isso ocorreu, sobretudo, durante a participação na pesquisa, por meio das compreensões sobre os contextos pesquisados.

Nesse sentido, os pressupostos da Sociologia da Infância atuaram de maneira concreta para o entendimento sobre as produções culturais infantis, neste caso, as brincadeiras lúdico-agressivas. Assim, para que essa manifestação brincante seja reconhecida, tenha visibilidade e faça sentido, é necessário construir pontes e atalhos com as próprias crianças, a fim de sinalizar que o cotidiano pode revelar uma harmonia a partir das diferenças de olhares, de ações e de compreensões.  

Se compreendermos que as brincadeiras lúdico-agressivas precisam ser (des)cobertas para revelar as produções culturais infantis, talvez seja possível colocar em pauta a discussão que lutar e imaginar cenários brincantes com heróis e vilões, muitas vezes em confronto com seus pares, pode favorecer a socialização, as aprendizagens significativas e a expressão de seus interesses.

Ter uma ligação com o que se passa entre as crianças, seus protagonismos e suas produções culturais é criar pontes com elas. Quando o professor se abre para ver com outras lentes a mesma perspectiva sobre as brincadeiras lúdico-agressivas, é possível que ocorra o estreitamento de linguagens, a construção de laços, a facilitação de diálogos e a aproximação de culturas, diminuindo conflitos e criando harmonia nas relações, sem muros e distâncias para separar.

Ao mesmo tempo, também é possível criar atalhos com elas. Isso significa que a dinamicidade da aula e, também, a observação das brincadeiras livres no recreio poderiam levar o professor a aprender com as crianças a engenharia brincante, a organização de suas lógicas e a personalização das brincadeiras lúdico-agressivas para um contexto didático. Isto é, inserir novas ações nas atividades pedagógicas com a participação das próprias crianças para a criação de regras, de compartilhamento de imaginações e de gerenciamento da brincadeira. Desse modo, a aula poderia se tornar um espaço brincante, repleto de significados.

Assim, as brincadeiras lúdico-agressivas, como tantas outras, não são perfeitas. Elas possuem traços e aspectos que se chocam, que se misturam e que se limitam. Contudo, essa investigação evidenciou que a configuração mais apropriada para que as brincadeiras lúdico-agressivas aconteçam é selecionada pelas próprias crianças, de uma forma coesa e em comum acordo. O professor, ao assumir a função de mediador nas atividades pedagógicas, poderia ampliar sua visão de mundo para compreender o papel social dos jogos e brincadeiras, as imaginações que atravessam o contexto brincante, as contradições, as imprevisibilidades e a harmonia conflituosa existentes nos olhares, nas ações e nas compreensões acerca da (in)visibilidade das brincadeiras lúdico-agressivas na escola.

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Sobre as autoras


Raquel Firmino Magalhães Barbosa


Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-2139-0146


Doutora em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo (2018). Professora da disciplina de Educação Física do Colégio Pedro II, Rio de Janeiro, Brasil. Membro do grupo de pesquisa Núcleo de Aprendizagens com as Infâncias e seus Fazeres. E-mail: kekelfla@yahoo.com.br


Beatriz Pereira


Universidade do Minho, Braga, Portugal

https://orcid.org/0000-0003-4771-9402


Doutora em Estudos da Criança pela Universidade do Minho (1988). Professora Catedrática da Universidade do Minho, Instituto de Educação. Membro integrado do Centro de Investigação em Estudos da Criança. E-mail: beatriz@ie.uminho.pt


Contribuição na elaboração do texto: as autoras possuem igual contribuição na elaboração do manuscrito.


Resumen


Este artículo analisa la (in)visibilidade de los juegos lúdico-agresivos en la Educación Infantil, en diálogo con los presupuestos teórico-metodológicos de la Sociología de la Infancia. Utilizando la etnografía, con episodios de interacción, la producción de datos reveló categorías de análisis sobre la escucha y la participación infantil: abordajes, registros y diálogos con y entre niños. Como resultado, destacamos que para que las producciones culturales infantiles sean reconocidas, necesitan ser visibles y tener sentidotengan visibilidad y sentido, de modo que sea posible construir puentes y atajos con los propios niños, para señalar que la vida cotidiana puede revelar armonía a partir de diferentes perspectivas, acciones y comprensiones.


Palabras clave: Juegos. Juegos lúdico-agresivos. Juegos de Lucha. Educación Infantil. Sociología de la infancia.



Abstract


This article analyzes the (in)visibility of ludic-aggressive play in Early Childhood Education, in dialog with the theoretical-methodological assumptions of the Sociology of Childhood. Using an ethnography with episodes of interaction, the production of data revealed categories of analysis on listening and children's participation: approaches, records, and dialogues with and between children. As a result, we emphasize that to be recognized, children's cultural productions need to be visible and meaningful, so that it is possible to build bridges and shortcuts with the children themselves, pointing out that daily life can reveal harmony based on differences in perspectives, actions, and understandings.


Keywords: Play. Ludic-aggressive play. Rough-and-tumble play. Childhood Education. Sociology of Childhood.





Linhas Críticas | Periódico científico da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, BrasilISSN eletrônico: 1981-0431 | ISSN: 1516-4896

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Referência completa (APA): Barbosa, R. F. M., & Pereira, B. (2023). (In)visibilidade das brincadeiras lúdico-agressivas na educação infantil: compreensões a partir das crianças. Linhas Críticas, 29, e50496. https://doi.org/10.26512/lc29202350496

Referência completa (ABNT): BARBOSA, R. F. M.; PEREIRA, B. (In)visibilidade das brincadeiras lúdico-agressivas na educação infantil: compreensões a partir das crianças. Linhas Críticas, 29, e50496, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350496

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1 Nonsense” alude às ações ambíguas, sem sentido e repreensíveis para adultos, porém, com muito significado para quem faz parte do contexto brincante. Já “brincante” se refere aquele que brinca, que usa a brincadeira como linguagem, forma de expressão e fantasia (Barbosa, 2018).


2A pesquisa teve autorização da escola, consentimento dos pais e/ou responsáveis e assentimento das crianças. Os nomes das crianças são fictícios e tomam como referência personagens de desenhos animados ditos por elas durante a pesquisa.



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