Dossiê | Escuta e participação nas pesquisas com (sobre) crianças

Escuta de crianças deslocadas como sujeitos de direito em Moçambique e Brasil

Escucha de niños desplazados como sujetos de derecho en Mozambique Brasil

On listening to displaced children as rights holders in Mozambique and Brazil

Marina Di Napoli Pastore, Luciana Hartmann




Destaques


Crianças deslocadas, imigrantes e refugiadas narram experiências de deslocamento e de moradia em diferentes territórios.


Metodologias participativas e colaborativas auxiliam na promoção da escuta sensível das crianças.


Narrativas e expressões das crianças devem ser consideradas parte das políticas públicas para as infâncias.


Resumo


Partindo do entendimento de que as crianças são sujeitos de direito, este artigo propõe um diálogo entre pesquisas realizadas em Moçambique e no Brasil com crianças que habitam diferentes territórios de passagem, como acampamentos para deslocados e abrigos para imigrantes e refugiados. Por meio de metodologias que promovem a escuta ativa destas crianças verificou-se que grande parte das políticas para pessoas em deslocamento centra-se em questões emergenciais e não preveem espaços de manifestação das infâncias. Esta reflexão intenta colaborar na implementação de políticas públicas que viabilizem a integração plena das crianças deslocadas e na vida social de seus territórios.

Resumen | Abstract


Palavras-chave

Crianças. Grupos minoritários. Escuta. Políticas públicas em educação.


Recebido: 31.08.2023

Aceito: 23.11.2023

Publicado: 31.12.2023

DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350651


Introdução


A caminho do segundo acampamento, lembro de perguntar sobre a atuação dos médicos nesta região:

- Como funciona a questão médica? Queria encaminhar umas crianças ali do projeto para avaliação...

- Ah, eles vão uma vez por semana no acampamento, mas não tem base fixa ali. Quais crianças?

- Algumas que acho que têm sarna, e um garoto que está com sangue ao urinar.

- Sangue? Como vocês olham essas coisas?

No momento em que escuto “como vocês olham essas coisas” minha mente trava. Estaria ele perguntando se, por acaso, eu estaria violando alguma linha em saber ética sobre o bem-estar das crianças? Ou, de forma mais perversa, se eu teria visto o sangue na urina? Volto àquele instante e apenas respondo: “eu perguntei”.

- Perguntaste?

- Sim. Olhei para ele, ele estava com cara de dor. Então eu virei e perguntei: “você está bem?”. E ele me respondeu: “meu xixi está a sair sangue quando acabo”.

A pessoa me olha com ar de dúvida. Eu devolvo o mesmo olhar. E peço para a equipe médica avaliar. Durante todo o caminho esse diálogo fica na minha cabeça. Qual dúvida ele teria? Eu tenho muitas, e devem continuar sem respostas. Aquela pergunta agora chama outra: como as pessoas que trabalham com essas crianças veem essas crianças? Olham, enxergam? Temos trabalhado com elas ou com programas sobre elas, sem elas? O acampamento de deslocados se aproxima e o trabalho começa a se concretizar nas crianças que vêm ao nosso encontro. (Caderno de Campo da primeira autora)

Esta descrição, extraída do caderno de campo de uma das pesquisadoras, foi realizada após trabalho de pesquisa e ação em acampamentos de crianças deslocadas por motivos de guerra, localizado ao Norte de Moçambique (África). Embora seja um recorte de uma situação vivida ali, com uma das crianças, acreditamos que este trecho retrata o cotidiano das outras crianças que vivem em espaços de passagem, de transição: um hiato entre infância e lugar, entre criança e saber.

Como se as crianças não respondessem por elas mesmas, ou como se apenas os adultos fossem capazes de responder por elas. Esta descrição inicia nosso interesse em colocar em relação dois trabalhos de pesquisa, realizados com crianças em deslocamento, com perspectivas comuns: do entendimento das crianças como protagonistas de suas histórias e produtoras de culturas, que têm compreensões próprias de seus contextos e que merecem ser escutadas. Este artigo objetiva enfatizar a importância da escuta das crianças, sobretudo aquelas em situações de extrema vulnerabilidade, que habitam espaços de passagem, como campos e abrigos para deslocados, imigrantes e refugiados. Acreditamos que esta escuta é fundamental na criação de políticas públicas para as infâncias, pois garante o reconhecimento da criança a partir de suas referências, vivências e experiências, como sujeito de direito.

Na contramão de uma visão adultocêntrica dos serviços e espaços ofertados às crianças em deslocamento, este artigo é costurado nas entrelinhas de uma escuta minuciosa e atenta, visando uma produção coletiva de dados sobre o entendimento das crianças em suas realidades. A partir da exposição do contexto de dois territórios de passagem distintos, habitados por crianças com – ou sem – suas famílias, localizados em Moçambique e no Brasil, procuramos defender a importância da escuta e da participação direta das crianças nas pesquisas, no sentido de garantir a construção de um espaço ético, estético e político que defenda as infâncias em sua diversidade de manifestações.

No presente artigo procuramos mostrar como o tema surge em nossos campos de pesquisa, enfatizando as questões que envolvem assistência e educação, visando colaborar na criação de políticas públicas, nacionais e internacionais, que integrem as crianças deslocadas, considerando suas próprias concepções, vivências, críticas e reflexões sobre as realidades que vivenciam.

Crianças deslocadas: um tema revelado no campo


Assim como Lopes e Vasconcellos (2006) mencionam no artigo intitulado “Geografia da infância: territorialidades infantis”, nosso tema também emerge do campo e da observação das territorialidades habitadas/vividas/sentidas pelas crianças. Em nossas pesquisas recentes deparamo-nos com crianças que vivem em acampamentos ou abrigos para imigrantes/refugiados, deslocados devido a crises políticas, econômicas e/ou conflitos armados, no Norte do Brasil e no Norte de Moçambique. Acompanhados, em sua maioria, de pelo menos um dos familiares, estas crianças frequentemente tiveram de abandonar suas casas apenas com a roupa do corpo, um calçado (quando tinham) e pouco, ou nenhum, pertence pessoal. Muitas destas crianças não tinham documentos de identificação ou qualquer comprovação de escolaridade, informações sobre histórico de saúde ou mesmo referências de outros integrantes de suas famílias. Ainda mais dramática era a situação daqueles que viajavam sozinhos, sem um adulto responsável, abrindo espaço para mais uma classificação: crianças em deslocamento e desacompanhadas.

Ferreira et al. (2022) levantam três reflexões sobre interfaces antropológicas em políticas públicas: 1) Como a antropologia e outros estudos participam e contribuem para o debate das políticas públicas, considerando seus métodos e conceitualização teórica?; 2) Quando os pesquisadores são convidados a esboçar alguns trajetos possíveis para a realização de políticas públicas?; 3) Como, a partir destas pesquisas, particularmente as que envolvem as crianças, impactam as políticas públicas?

Inspiradas pelas autoras, nos perguntamos como a pesquisa de campo, realizada a partir de uma escuta ativa e participativa com as crianças, pode colaborar na formulação de políticas públicas específicas para crianças em deslocamento.

No texto que inicia a introdução, o ponto que nos faz refletir é sobre quem escuta estas crianças, ou quem escuta aquilo que acredita ouvir. Crianças que vivem em acampamentos para deslocados, ou abrigos para refugiados, tendem a sofrer diversas invalidações ou silenciamentos, especificamente aqueles que dizem respeito às especificidades do ser criança, suas temporalidades, territorialidades, opiniões, desejos, memórias e experiências.

Foi num momento de escuta das crianças, em um dos acampamentos ao Norte de Moçambique, que B., de 15 anos de idade, diz: “Éramos em três irmãos, mas agora somos dois” – sua irmã de 20 anos estava desaparecida desde 2020 e ninguém tinha notícias dela. A família saiu de sua aldeia, deixou sua casa e, neste ir e vir, deixou também sua irmã. Em outro momento, S., de 17 anos, chora ao revelar que estava sozinho ali desde 2019 e o que mais sentia era saudade: “Quero voltar para casa. Mesmo se a casa não existir, se a machamba (horta) não for a mesma. Casa é onde está minha família”. R., de 13 anos, morador de um centro de acolhimento a imigrantes em Brasília – DF, também conta a respeito de sua trajetória de deslocamento:

Antes de venir para acá, para Brasil, nosotros estuvimos en Colombia, en el Ecuador y en el Perú, pero nos pasaron muchas cosas malas allá, pues nos robaron y... Îbamos allá a al a Ecuador hacia una vida mejor, pero nos robaron y tuvimos otra vez para atrás. (…) Llevamos un año caminando. A veces pegamos cola y a veces no, a veces caminábamos. Por la ruta. De noche y de día. (…) Nosotros vivíamos pues en la calle. Vivíamos en la calle porque a veces no teníamos para pagar un hotel para dormir. Así que como no teníamos, a veces dormíamos en la calle.

A caminhada de R. e de sua família “hacia una vida mejor” fez com que passassem por três países e, depois de perderem os poucos recursos que tinham, retornassem à Venezuela para, então, atravessar a fronteira com o Brasil e conseguir ingressar no país como solicitantes de refúgio.

Em seus poucos anos de vida, os três jovens já enfrentaram diversas estradas, situações distintas de abrigamento e muitas perdas. Como lidaram/lidam com este processo de deslocamento? Quais os impactos destas vivências em seus corpos e comportamentos?

Em nossas experiências etnográficas, temos observado que as políticas para imigrantes, refugiados e pessoas em deslocamento priorizam, em grande parte, o abrigamento, a segurança, a alimentação, a saúde, a higiene e a garantia de direitos sociais, o que é compreensível em se tratando de contextos que se caracterizam pela extrema vulnerabilidade. Estas políticas, no entanto, preveem pouca – ou nenhuma – ação direta ou atenção ao que pensam e sentem as crianças. Os exemplos acima, de conversas iniciais, nos fizeram pensar em como o deslocamento e o status adquirido por estas crianças acabam sendo silenciados, na maioria das vezes, em nome de um Estado de proteção. Como podemos conciliar um Estado de proteção com a escuta das crianças, favorecendo a criação de políticas públicas para as crianças e sobretudo com as crianças nestes espaços? Crianças em deslocamento são desterritorializadas ou reterritorializadas? O que elas próprias pensam disto e como se sentem nestes espaços?

F., de 10 anos, venezuelana abrigada em uma casa de acolhimento em Brasília, comenta sobre os abrigos por onde passou em Roraima: “Lá em Boa Vista eram muitas famílias. Ficamos em um refúgio que se chamava Rondon 5. Lá tinha muitas famílias. Tinha o Rondon 1, Rondon 2, Rondon 3... O Rondon 3 estava cheio de doentes, tia!”.

Sobre a vida nos abrigos, M, de 12 anos, também procedente da Venezuela, conta:

Depois vim para o Brasil e bem, fiquei vários meses em Boa Vista, estudei em Boa Vista… Vivi no abrigo Rondon 4 por oito meses. Em Brasília estou há dois meses com meu papai e minha madrasta. Não me dou muito bem com minha madrasta... Bem, meu presente agorinha é bom. Levo dois meses aqui nesta casa, em Brasília. Aqui tenho passado melhor que em Boa Vista. Ah, em Boa Vista era mais gente e aqui não é tanta gente. Lá sim era bastante gente, mas estava bom. Dou graças a Deus por tudo.

Para Haesbaert (2007), não se pode pensar em “desterritorialização”, que seria a perda ou destruição do território, “ou melhor, nossos processos de territorialização (para enfatizar a ação, a dinâmica), sem que haja uma reflexão em sua contraface, qual seja, o intenso e complexo processo de ‘(re)territorialização’, em seu aspecto múltiplo, aqui considerando o processo multiterritorial, de ‘convivência concomitante de diversos territórios’” (Haesbaert, 2007, p. 20).

Inspiradas nas reflexões que Roselete Aviz de Souza (2012) faz durante sua pesquisa sobre a relação entre escuta e território com crianças em Moçambique, encontramos a noção de “território sonoro”, desenvolvida por Obici (2006), citado pela autora, que nos convida a explicitar as condições de sujeição da escuta, como as relações de poder, delimitação de território, fabricação de subjetividades, dentre outras. Propomos, assim, pensar as reterritorializações que podem ser agenciadas pelas crianças e jovens em situação de deslocamento a partir da instauração de novos territórios sonoros que, no caso de nossas pesquisas, envolvem a radicalização da escuta destas e o consequente reposicionamento das relações de poder entre adultos e crianças. Estes territórios envolvem seus corpos e vivências, seus lugares habitados, esconderijos, fugas, caminhos e chegadas, frequentemente provisórias. Como se configuram estes territórios ditos “de passagem”, habitados por meses e até anos pelas crianças? Precisamos conhecer os territórios para poder ouvir e compreender as crianças. Para isto, vamos adentrar, neste momento, alguns acampamentos de deslocados em Moçambique, e abrigos/centros de acolhimento no Brasil.

Crianças deslocadas estão em algum lugar: descrição etnográfica dos acampamentos


Nossas pesquisas vêm sendo realizadas, como já foi dito, em dois países diferentes: Brasil e Moçambique. Abordar o tema da migração e do deslocamento nestes países demanda, no nosso entender, uma descrição dos espaços de passagem das populações migrantes e deslocadas como territórios. Territórios de chegada, de passagem, de vivência, de ser e estar. Por períodos mais ou menos largos, os acampamentos têm sido a casa de muitas crianças. Conhecer as configurações destes espaços nos possibilita acessar e compreender melhor as experiências e percepções narradas pelas crianças que neles habitam.

Nossa primeira descrição é oriunda da pesquisa da primeira autora, realizada em acampamentos localizados em Moçambique. A província de Cabo Delgado conta, atualmente, com 90 acampamentos para deslocados do conflito armado que ocorre ao Norte de Moçambique. Localizada na fronteira com a Tanzânia, Cabo Delgado é palco dos conflitos armados que vêm ocorrendo desde outubro de 2017, sendo um dos principais pontos de ataques perpetrados por um grupo armado não-estatal contra a população civil.

Segundo os Médicos Sem Fronteiras (2021), embora as razões deste conflito sejam multifacetadas, as consequências são bastante claras: quase 700.000 pessoas estão deslocadas internamente, vivem em medo, insegurança e sem acesso a bens e serviços básicos como alimentos, água, abrigos e cuidados de saúde. Em 2023, o número estimado de deslocados ultrapassa um milhão de pessoas (Madureira, 2021, s.p). No período entre janeiro e fevereiro de 2023, a primeira autora trabalhou junto a uma equipe do Projeto Capoeira para um Futuro em dois acampamentos de deslocados, sendo que cada um deles agrupava em média 12 mil pessoas, dentre as quais 5.000 eram crianças/jovens entre 0 e 18 anos de idade.

No primeiro acampamento, conhecido por ser o “lugar de chegada”, os recém-chegados eram agrupados em uma grande casa, com 16 quartos, ocupados por famílias de até 4 pessoas, até que as outras casas estivessem disponíveis. Sem banheiro, com espaços abertos em latrinas comunitárias, as pessoas se revezavam. Nesta casa, que cedia lugar para 64 recém-chegados, acabava sempre “cabendo mais um”: o número de deslocados podia variar, por dia, em até 250 novos integrantes. As casas abriam espaços para mais pessoas, ao mesmo tempo que a estrutura se encontrava cada vez menos acolhedora. Após cerca de 15 dias, as famílias eram realocadas para casas de passagem, onde ficariam até poderem retornar às suas aldeias e vilas, quando – e se – isso fosse possível.

As casas, feitas de paus e bambus, cobertas com lonas, tinham dois cômodos, e abrigavam famílias inteiras. Quando não cabiam, as pessoas se dividiam nas famílias acolhedoras: aquelas que recebiam recém-chegados que ficavam sem casas. As lonas, que serviam como cobertura e teto, eram doadas pelas Organizações Não-Governamentais (ONGs) e Agências Humanitárias ali presentes. Se chovesse ou ventasse, as lonas voavam ou rasgavam; quando alguma família se mudava, levava a lona consigo, e apenas quando houvesse outra doação é que as casas voltavam a ter “teto”. As famílias que permaneciam mais tempo no acampamento ganhavam espaços de machamba e faziam suas plantações e colheitas; as que acabavam de chegar tinham que esperar a cedência de novos espaços.

O acampamento era dividido em 5 bairros, com cerca de 350 famílias em cada um. Cada bairro era chefiado por um líder da comunidade, que reportava ao chefe do acampamento as questões principais. Cabe dizer que algumas famílias eram compostas apenas por crianças “desacompanhadas”, que vieram sem adultos ou permaneceram no local sozinhas, devido à causa diversas, como o desaparecimento ou morte dos familiares adultos, busca por segurança, escolha de não retornar, entre outras.

Dentre os outros espaços, pode-se ainda elencar: um pátio grande onde ocorriam algumas atividades esporádicas, como futebol ou voleibol, que dependiam de alguma ação voluntária externa; a clínica móvel de saúde (que era fixa, na verdade); a escola do acampamento; a igreja, destinada a todas as religiões com exceção da islâmica (como os ataques feitos pelos grupos armados são atribuídos a grupos jihadistas, proibir a presença da religião e da mesquita foi uma forma de punição do Governo, embora desconsidere que a maior parte da população é muçulmana); Espaço Amigo da Criança, em que ocorrem ações de proteção às crianças e às mulheres; e, por fim, o barracão recém-construído para a capoeira. 

As atividades voltadas para as crianças, naquele momento, eram apenas as de capoeira. Cabe ressaltar que, no primeiro acampamento, o trabalho foi realizado com 100 crianças.

O segundo acampamento, um pouco menor, tinha cerca de 10 mil pessoas, sendo que, dentre estas, mais da metade eram crianças. O espaço era bem parecido com o primeiro, com a diferença de haver uma configuração mais organizada, uma vez que, por não ser de chegada, as pessoas se estruturavam ali como aldeia.

Os responsáveis pelas crianças eram mais ativos e se encontravam presentes. Neste acampamento não soubemos da existência de crianças desacompanhadas. Havia o espaço da clínica, a escola, o pátio, a quadra, uma construção recém-inaugurada das ONGs, onde se realizavam atividades com as crianças menores, e também machambas. Da mesma forma que no outro acampamento, as casas eram feitas de bambu ou paus e cobertas de lona. Não havia nenhum sistema de saneamento ou lixo, e as latrinas ficavam a céu aberto.

Naquele período, com as aulas suspensas por conta das férias escolares, a única atividade que as crianças tinham era a capoeira. Por questões de recursos humanos e financeiros, neste segundo acampamento só foi possível trabalhar com 50 crianças.

A segunda descrição que faremos surge da pesquisa da segunda autora, em alguns dos territórios de passagem nos quais migrantes e refugiados venezuelanos se instalam quando chegam ao Brasil. Em 2022, de acordo com dados do Alto-comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR – agência da ONU para refugiados), em Roraima, estado na fronteira norte do país, havia cerca de 7000 venezuelanos vivendo em nove abrigos coordenados pela Operação Acolhida. Criada em 2018, a Operação Acolhida visa garantir o atendimento humanitário aos refugiados e migrantes venezuelanos em Roraima, principal porta de entrada da Venezuela no Brasil, por meio da atuação integrada de servidores federais, militares, profissionais de organismos internacionais e entidades da sociedade civil. Considera-se que o número de venezuelanos que deixou o país de origem desde 2013, devido à crise política, financeira e social, ultrapassa 5 milhões de pessoas. Dentre estes, até junho de 2022, cerca de 763 mil já havia passado ou se instalado no Brasil. Segundo dados da Plataforma R4V (2022, s.p.), em agosto de 2022, o país havia concedido residência temporária ou definitiva a 311.951 venezuelanos, além de 90.870 solicitantes de asilo e de 49.824 personas refugiadas acolhidos no país. Estima-se que mais de 30% deste fluxo migratório seja constituído por crianças e jovens. Como vivem, o que fazem e pensam estes pequenos migrantes?

Em janeiro de 2022, ainda sob as restrições da pandemia de Covid 19 (Corona Virus Disease), iniciamos uma pesquisa com o intuito de verificar o impacto da pandemia na escolarização de crianças imigrantes e refugiadas. Para isto, ao longo do ano realizamos pesquisas de campo em abrigos, ONGs e centros de acolhimento nas cidades de Brasília (Distrito Federal) e Boa Vista e Pacaraima (capital de Roraima e cidade fronteiriça com a Venezuela, respectivamente).

Nossas pesquisas são pautadas metodologicamente por uma perspectiva que temos chamado de etnográfico-performativa, que parte da premissa antropológica da observação e do registro, mas é também atravessada pelas linguagens artísticas (Hartmann et al., 2020). Desta forma, a observação não é apenas participante, mas é propositiva, poética, performativa COM as crianças. As histórias das crianças emergem, assim, em meio à leitura de um livro, a jogos teatrais, à partilha de canções brasileiras e venezuelanas, à criação de brinquedos com materiais não-estruturados ou, simplesmente, enquanto adultos e crianças soltam bolhas de sabão, porque as bolhas voam ao sabor do vento, sem fronteiras.

Nosso contato com as crianças venezuelanas iniciou em Brasília na Casa Bom Samaritano, instituição instalada em um prédio cedido pela CNBB, gerida pelo Instituto de Migrações e Direitos Humanos e pela Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI) Brasil, que acolhe famílias venezuelanas por até 90 dias. A Casa tem estrutura para acomodar até 94 pessoas ou 15 famílias e fornece apoio, no âmbito do Projeto Acolhidos pelo trabalho, para que as famílias migrantes consigam emprego e moradia no Distrito Federal e região. As famílias que chegam na Casa são provenientes de abrigos de Boa Vista e solicitam voluntariamente a interiorização. Para as crianças, portanto, a Casa é mais um território de passagem que elas experienciam, como já pudemos ler nos depoimentos de F. e M., mencionados acima.

Trabalhar com crianças em territórios de passagem envolve muitos desafios. Um deles – talvez o principal – é que nunca se sabe ao certo quais delas ainda estarão lá na semana seguinte. Rapidamente entendemos que as atividades, portanto, teriam de iniciar e acabar no mesmo dia. Outro desafio foi lidar com uma faixa etária muito ampla, que ia de bebê de colo a adolescentes e jovens até 18 anos, garantindo o envolvimento de todos em ações que fossem lúdicas e seguras ao mesmo tempo. Boa parte das crianças também estava pouco habituada às rotinas de organização de grupo, comuns em espaços escolares, pois haviam deixado de estudar desde que partiram da Venezuela.

Foi neste contexto que as crianças venezuelanas começaram a nos contar sobre seu percurso de vinda para o Brasil1, sobre a passagem por diferentes abrigos, em Pacaraima e/ou Boa Vista, sobre os familiares que ficaram... Muitos mencionavam: “Eu vim do Rondon 5”, “Eu morei no Rondon 1”. Para ter uma ideia mais clara de como se configuravam estes abrigos, em novembro de 2022 decidimos conhecê-los pessoalmente.

Lá, a estrutura é organizada de forma comum a muitos campos de refugiados espalhados pelo planeta: um grande terreno cercado, com acesso limitado e protegido para garantir a segurança, casas modulares da ACNUR, organizadas em longos corredores, espaços comuns para refeições, banheiros, salas de atendimento à saúde, documentação... E muitas, muitas crianças andando por todo o lado. Em alguns abrigos de Roraima há a presença de uma ONG, Pirilampos, que se dedica especialmente a realizar atividades artísticas e educacionais com as crianças, porém seu espaço físico e seus funcionários não conseguem acolher todas as crianças do abrigo, que podem somar facilmente algumas centenas.

Assim que chegamos ao abrigo Rondon 1, que havia acabado de ser agregado ao Rondon 4, passando a contar com mais de 2000 moradores, logo percebemos um grupo de oito ou nove meninos2 que cercavam um militar do exército que trabalhava na Operação Acolhida. Este pareceu entender rapidamente o motivo da abordagem e, sorrindo, distribuiu dindins (espécie de picolé) para todos, lembrando que deviam colaborar com a limpeza do espaço. Ao perguntarmos se frequentavam a escola, apenas um dos meninos respondeu afirmativamente. E quando indagamos sobre o que faziam no tempo livre e com que brincavam, foram unânimes ao responder: “Nada!” Um deles acrescentou: “Antes tínhamos uma bola, mas depois que furou não temos mais nada para fazer.”

A este “nada”, as crianças respondem criativamente com brincadeiras diversas, que vão desde um desenho na terra, feito com um pedaço de pau, a um jogo de futebol improvisado com uma garrafa plástica. Mas o que está em questão aqui não é apenas o que as crianças fazem, mas o que os adultos não fazem. A maior parte dos adultos do abrigo está tão ocupada em garantir a manutenção das vidas ali abrigadas que não consegue escutar as demandas das crianças, que poderiam ser tão simples quanto algumas bolas para brincar.

Entre lugares, políticas e ações: a escuta ativa com crianças deslocadas


Adultos nem sempre oferecem às crianças uma escuta atenta e interessada, e isto vale frequentemente para o campo acadêmico e para as práticas assistenciais, pois elas ainda são escassamente inseridas nas análises do campo socio-antropológico. Nos estudos das infâncias, as crianças são consideradas sujeitos de direitos e participativas, mas muitos destes ainda operam dentro de referenciais, conceitos e discursos eurocêntricos e normativos, com lógicas adultocêntricas.

Para entender à complexidade com que as culturas e sociedades abordam e lidam com as crianças, precisamos ir além do óbvio. O óbvio, em contextos de estudos sobre as crianças deslocadas, com ênfase nas que habitam as regiões ao Sul do mapa global (como as deste artigo), significa operar pelo viés da falta, das negatividades, das doenças, da pobreza, dos conflitos, da rota migratória, do que ficou “para trás”. Ir além do óbvio, no caso de nossas pesquisas, pressupõe escutar as crianças para compreender, em seus próprios termos, suas vivências nestes territórios de passagem, amplificando-os também como territórios sonoros.

A negação das diferenças e diversidades, tanto nos contextos como nas relações arcadas pelos conflitos, externos e internos, parece permanecer ainda atualmente, seja nas políticas seja nas formas de se pensar e trabalhar com as crianças no Norte do Brasil e de Moçambique (Abebe & Ofosu-Kusi, 2016; Imoh, 2016).

Num momento em que, nas diversas áreas do conhecimento, se tem falado na criança como ator social e agente do seu processo e do modo como vai organizando e produzindo sua vida, através de inter-relações e produções próprias e coletivas, nos parece inoperante e, de certo modo, desumanizante, não escutar as crianças e observar como se constitui seu ser sócio-histórico-cultural (Cabral, 2007; Faria et al., 2015).

Outro ponto que nos chama atenção, em torno das crianças deslocadas, é relativo à forma como sua estrutura social vem sendo entendida, ou negada. As crianças têm sido colocadas pelo viés da falta e da proteção social que segue um protocolo já instituído nestes lugares, sem que haja uma abertura para o diálogo com elas. Um destes exemplos aconteceu numa manhã de sábado, quando, em conversa com as crianças em um dos acampamentos, a seguinte cena aconteceu:

Era por volta das 9h da manhã, num dia um tanto nublado, quando as crianças foram chegando, pouco a pouco, num ritmo mais lento que o de costume. Com luvas em suas mãos, elas foram entrando, uma a uma, e se sentando ao chão. Algumas meninas tiram a luva e colocam ao lado, enquanto os meninos usam as luvas para os treinos de capoeira. Quando questionados sobre aquele novo adereço, dizem “ganhamos na fila da agricultura”. Fila da agricultura? Mas, bem mesmo, o que era aquilo?

D. O: todo dia tem uma bicha3 nova: das sementes, do uniforme, da lona, da água. Hoje era da agricultura: veio um caminhão e nos mandou fazer a fila. Nos deram regador, luvas e um pá pequena. Peguei logo a luva para mim, sabia que minha mãe nem ia usar mesmo! Mas assim, esse regador não sei quem teve essa ideia. Era melhor nos darem balde, aí nós podíamos usar para catar água, tomar banho, aquecer e tomar chá. Essa cena aí (regador) nem vamos fazer nada! Mas ya, já estamos habituados. (Caderno de Campo da primeira autora)

Este trecho nos faz refletir sobre duas visões: o papel das ONGs nestes acampamentos, e o lugar das crianças em suas opiniões.

Grosfoguel (2019, p. 76) defende que “os diálogos e alianças sul-sul são importantes hoje mais do que nunca. Não podemos conceber uma mudança civilizatória sem contar com atores políticos aliados do mundo africano, asiático, latino-americano e do sul dentro do norte”. Mas, será que dentro destas alianças também não nos deparamos com ordens e imposições traçadas numa linha vertical, feitas por adultos, sem contexto ou escuta para∕com∕sobre as crianças?

Uma das políticas de proteção aos direitos das crianças dentro (e fora) destes acampamentos é voltada à oferta de aulas e à garantia do direito das crianças de irem à escola. No caso de Moçambique, a escola se localiza dentro do próprio acampamento, uma vez que o espaço geográfico “extramuros” (embora não exista muros nos acampamentos) não consegue alocar o número gritante de crianças que nele habitam. Com uma escola construída dentro do acampamento, sem mobilidade do ir e vir e sem contato com outras crianças, a escola acabava por ser, mais uma vez, excludente.

Em uma conversa com um grupo de meninas, elas disseram que sentem falta de ir à escola. Quando questionadas sobre estarem ou não matriculadas, elas afirmaram que “Aqui vamos à escola, mas é diferente. Ninguém sabe bem nossa maneira de falar, e sabe, aqui não é escola, não tem parede, não tem casa de banho4, nem temos TPC5. Dizem que não temos papel, então pronto, assim já está, e ficamos assim mesmo”. Nos acampamentos em Cabo Delgado, a educação e as aulas eram ofertadas por uma ONG sueca, e realizadas obrigatoriamente em língua portuguesa, sem abertura para a compreensão de outras línguas maternas, como o maconde6. O fator língua, num país em que há 32 línguas maternas, como é o caso de Moçambique, deve ser considerado, principalmente com crianças que estão em situação de deslocamento, pois os conflitos armados são causados justamente por disputas políticas entre diferentes grupos locais.

No Brasil, parte das crianças venezuelanas abrigadas em Roraima conseguem matrícula em escolas públicas, porém isso não garante o seu acolhimento ou integração. A língua também parece ser um impedimento. Mais de uma criança nos contou que alguns professores costumam dizer: “Aqui nesta escola não se fala espanhol!”

A escola, entendida como um direito das crianças e um dever do Estado, parece ser, em situações de ajuda humanitária e políticas para emergências, algo imposto, que não dialoga com as realidades das crianças e nem considera o próprio espaço de encontro que a escola ocupa na vida das crianças. A educação nos acampamentos também é frequentemente distanciada da realidade ou inserida numa lógica que não compreende as crianças como interlocutores do conhecimento e dos saberes, e não fornece uma base para a situação atual/real em que as crianças se encontram.

As barreiras para uma educação que pretenda ser acessível, igualitária e ativa na participação e desenvolvimento infantil, como pretendem os programas governamentais e as ajudas humanitárias, ainda persistem. Podemos citar alguns aspectos, como: o espaço físico e a estrutura escolar insuficientes ou inexistentes; a disposição das aulas e as disciplinas lecionadas; a ausência de professores, e o despreparo de alguns; o uso da violência física como forma de castigo e coerção; o uso obrigatório da língua portuguesa, o que dificulta a compreensão do conteúdo e do próprio desenvolvimento escolar; a falta de materiais, entre outros aspectos (Costa, 2009; Basílio, 2010; Pastore & Barros, 2018).

Crianças deslocadas, alocadas em abrigos, acampamentos ou casas de passagem têm seus cotidianos regrados por ações que, na maioria das vezes, não condizem com suas expectativas, como nos exemplos citados acima. Os autores Tatek Abebe e Yaw Ofosu-Kusi (2016) abrem uma discussão sobre como, frequentemente, crianças são vistas pelo viés da vulnerabilidade e inocência, sendo colocadas como "vítimas passivas" e não agentes de direitos e participantes ativas.

Em um trecho do artigo “Beyond pluralizing African childhoods: Introduction”, ao abordarem sobre os estudos de crianças africanas, Abebe e Ofosu-Kusi (2016, p. 304 – tradução nossa) apontam que:

As crianças são vistas como crescendo em contextos afastados das forças da modernidade, da infraestrutura e da tecnologia. [...]. Nem as perspectivas sobre as crianças africanas são consideradas úteis em si mesmas – como um fim – mas como uma ferramenta analítica para aguçar ideias sobre como a infância deve ser no mundo minoritário.

Se há um entendimento que as crianças moçambicanas, deslocadas dentro do próprio país, ou as venezuelanas, dentro da América do Sul, movem-se em função de situações de crise, haveria espaço para uma discussão dentro dos próprios referenciais “sul-sul” sobre essas crises nas teorias e modos de compreensão de infâncias?

Uma dúvida nos surge como pesquisadoras nestes cenários: será que há espaço para outras formas de partilha pelas quais temas como educação, moradia, medos, inseguranças, traumas possam ser debatidos?

Apostando em uma resposta afirmativa, investimos em diferentes metodologias participativas, colaborativas e performativas, por meio das quais a escuta das crianças possa ser promovida e valorizada, como expomos abaixo.





Produzir dados com as crianças: formas ativas de uma escuta a favor das infâncias


Durante nossos trabalhos de campo fizemos um exercício de reflexividade, que gostaríamos de partilhar neste texto: quando as crianças produzem dados, não apenas em entrevistas e questionários, mas em outras formas de expressão, estes são devidamente validados pelos investigadores? São as políticas públicas que deixam as crianças de fora ou nós, adultos que fazemos pesquisas, práticas e articulações, que também não consideramos suas expressões e opiniões por completo?

O desafio que nos propomos aqui é o de pensar em como podemos garantir a participação das crianças, tanto em nossas pesquisas como também na construção das políticas públicas, essencialmente as de proteção e cuidado dentro de abrigos e acampamentos de migrantes, refugiados e deslocados. Como podemos pensar as políticas públicas que dialoguem, de fato, com as crianças e suas pluralidades? Como buscar ou desenvolver referenciais em que a presença das crianças, seus gostos, seus cheiros, suas sensações, seus pensamentos, vozes e produções apareçam? Um primeiro ponto é compreender as especificidades das crianças deslocadas e da relação que estabelecem com os territórios que habitam. Compreendendo que não há uma única forma de infância descontextualizada temporal e culturalmente (Prout & James, 1990), nos dedicamos a pensar as crianças deslocadas a partir de seus percursos, andanças, passagens e chegadas.

Ao questionar as infâncias no plural, questionamos também essa forma colonizadora, adultocêntrica e única de refletir sobre teorias, metodologias e compreensões sobre e de crianças e infâncias em seus espaços e tempos. Se compreendemos as infâncias como resultado de atravessamentos de variáveis sociais como raça, gênero, sexualidade, religião, lugar de moradia, etnia, classe social etc., a diversidade não pode ser apenas uma constatação: ela é o ponto de partida.

A coexistência das identidades, a partir das diferenças culturais, é considerada por nós nas diferentes formas de existir que se articulam na vida comum de um acampamento ou abrigo. São as distintas trajetórias e especificidades de vida nestes contextos que vão produzindo as experiências das crianças que habitam estes espaços. Buscando ter acesso a estas experiências, recorremos a distintas metodologias participativas. Para além da escuta das narrativas durante atividades lúdicas, realizadas em nossas pesquisas de campo, selecionamos para debater neste artigo uma metodologia bastante representativa de nossa abordagem, o mapa corporal (body mapping), que contribuiu para provocar a reflexão aqui proposta.

A partir de estudo realizado em Ontario com mulheres imigrantes e refugiadas, Gastaldo et al. (2012) discutem sobre a utilização dos mapas corporais e sua definição como imagens do corpo e sua representação, em que há um processo de criação de mapas pelo uso de desenhos, pinturas e outras técnicas baseadas em arte para representar os aspectos de suas vidas, corpos e emoções. Um outro artigo, realizado por Matos et al. (2018), descreve a utilização do mapa corporal como metodologia narrativa possível sobre práticas corporais; em crianças, por sua vez, é utilizado para identificação de comportamentos como ansiedade e raiva. Será que crianças narram apenas aquilo que os adultos procuram ou podem trilhar caminhos mais seguros sobre si se possibilitarmos diferentes formas de expressão?

Ao compreendermos, em nossas pesquisas, o mapa corporal como uma forma possível de contar histórias, pelo qual as crianças expressam seus sentimentos e vivências, abrimos diálogos com outras possibilidades expressivas das crianças, posicionando-as como sujeitos de direito, protagonistas de suas histórias.

Nos acampamentos em Cabo Delgado, por exemplo, os mapas corporais deram início a um processo de vínculo com as crianças. Mais do que identificar seus traumas, as crianças puderam falar e serem ouvidas. Em um dos relatos trazidos por A., de 13 anos, quando questionado sobre o tempo que estava no acampamento, ele disse que “Desde 2020, quando fugimos pelo mato. Mas essa é a primeira vez que me perguntam isso”.

Ele relatou, em sua produção de mapa corporal, a forma como os conflitos foram sendo traçados em seu corpo e comportamento: tensão nos ombros, pesadelos, calafrios. Os olhos desconfiados afastavam a possibilidade de proximidade que, depois de certa insistência misturada com delicadeza, apontou para um caminho conjunto: o do fazer do mapa corporal uma ponte entre o sofrimento e as dores, a abertura para compreensão e a escuta para o que parecia proibido.

Algumas crianças mostraram outros caminhos possíveis: depois de falar de suas vivências, pediam para desenhar e, quase que de forma unânime, os desenhos era uma casa colorida, uma machamba, um encontro com uma lembrança do passado ou um desejo do futuro. Por outro lado, raramente os trabalhos desenvolvidos dentro destes acampamentos e lugares de passagem abordavam noções de futuro e perspectivas para além do abrigamento.

Pudemos perceber também que as percepções da dor também variavam de acordo com o gênero. Os meninos falaram mais sobre memórias, afetos e das saudades que tinham da casa. As meninas, por sua vez, contaram sobre as dores que sentiam pelo corpo, e como essas haviam começado após os conflitos. Embora cada criança tivesse suas particularidades, constatamos uma ênfase em aspectos que envolvem a saudade da vida anterior e da casa, bem como a psicossomatização das dores.

As crianças, de forma geral, foram receptivas com a metodologia utilizada e todo o cuidado ético foi tomado para garantir a segurança de todas que participaram do projeto, como acompanhamento individualizado e apoio por parte da terapeuta ocupacional. Muitas histórias foram trazidas e muitas sensibilidades abordadas, tocadas, abertas.

Em um momento especialmente sensível, durante uma roda de conversa, uma das meninas narrou a seguinte cena: “Era de noite e ouvimos passos. Bateram em nossa porta e papá nos mandou calar. Foram embora e nós saímos. Mas não tinham ido de verdade. Apanharam papá e nos mandaram correr. Só ouvi tiros, gritos, e não olhei para trás”. N., de 15 anos, contou que ficou na mata, em rota de fuga, “por alguns dias. Acho que cinco”, até que chegou ao acampamento. Suas principais lembranças evocavam a fome e sede que sentiu, e o fato de não poder parar para chorar o ocorrido com seu pai, com medo de que “o pior pudesse acontecer também”. Após o relato, decidimos fazer uma dinâmica com as crianças e falar sobre a situação mencionada e, para nossa surpresa, uma ordem superior impediu-nos, com a prerrogativa de que “falar sobre morte pode traumatizar as crianças. Aqui falamos sobre positividade, noções de futuro e educação”. Ao tentarmos entender qual ordem era esta, fomos surpreendidas com “aqui não se fala em guerra. Guerra é um termo muito pesado para falar com as crianças. Usamos ‘conflitos armados’” (D., 28 anos, monitor).

Estas frases, verbalizadas por adultos, mostram a cisão entre a realidade e a desconexão com o que se vive dentro dos acampamentos. Se as próprias crianças falam sobre guerra, por que, em situações de escuta e acolhimento, o termo precisa ser outro? São as crianças que não estão preparadas para falar sobre seus traumas ou os adultos que ainda possuem entraves e tabus para escutar o que elas têm a dizer?

O Direito Internacional Humanitário distingue entre duas categorias de conflitos armados: a) Conflitos armados internacionais, em que dois ou mais Estados se enfrentam; e b) Conflitos armados não internacionais, entre forças governamentais e grupos armados não governamentais, ou somente entre estes grupos. Sua diferenciação com o termo guerra é a declaração formal ou reconhecimento do status de guerra (Hussek, 2017). Estas diferenciações são estabelecidas por órgãos governamentais, internacionais e, mais uma vez, não consideram as vozes e a escuta das crianças. Ao realizarmos uma dinâmica com desenhos, as crianças desenharam momentos da guerra, nomeando deste jeito: guerra. Num lugar em que o Estado não chega, nem as políticas ou reconhecimentos básicos do ser criança, por que é o Direito Internacional que define o sentimento das crianças?

Considerações finais


Para finalizar, gostaríamos de retomar um ponto: como as teorias sul-sul têm dialogado com crianças deslocadas? A reflexão que emerge das vivências em nossos dois campos de pesquisa é: sentimentos, sensações, vivências, desejos e planos de futuro parecem não entrar em jogo quando o assunto principal, para os adultos, é a sobrevivência e os cuidados urgentes de proteção social.

As políticas sociais e públicas, no Brasil e Moçambique, ainda dialogam muito pouco com as realidades de mudanças, com os trânsitos e, principalmente, com as escutas sensíveis, atentas e participativas das crianças. Os exemplos que trouxemos, de momentos partilhados e vivenciados dentro dos abrigos e acampamentos, só foram possíveis porque nos relacionamos com as crianças imigrantes, refugiadas e deslocadas como sujeitos de direito, agentes sociais plenos em suas diferenças, diversidades e alteridades.

Nas teorias sul-sul e nos estudos das infâncias, ao longo dos anos, os paradigmas foram mudando, porém, as crianças deslocadas e as formas de trabalhar com elas ainda são focadas nos problemas, faltas, no abastecimento de necessidades ditas básicas. Pensar com as crianças deslocadas, a partir de sua escuta, é repensar as formas do sul-sul, das teorias e das marcas da colonização ainda presentes nos diferentes países.

Crianças deslocadas são crianças e, como afirma Durham (2004, p. 498), “chamar alguém de criança é posicioná-la em termos de atributos sociais variados, incluindo não apenas a idade, mas também a relação de independência-dependência, autoridade, direitos, habilidades, conhecimento, responsabilidades" (tradução nossa).

Ouvir as crianças de forma participativa é abrir sentidos e sensibilidades para seus mundos, territórios, vivências, percursos, caminhos, andanças, paradas. Quando suas palavras, gestos, canções, desenhos e opiniões ecoarem, teremos políticas públicas mais afinadas com suas reais demandas.

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Sobre as autoras


Marina Di Napoli Pastore


Instituto Superior de Ciências de Saúde, Maputo, Moçambique

https://orcid.org/0000-0002-5924-8719


Doutora em Terapia Ocupacional pela Universidade Federal de São Carlos (2020). Professora titular do Instituto Superior de Ciências de Saúde. Membro dos grupos de pesquisas Infâncias Protagonistas: uma proposta colaborativa de criação de políticas públicas para a integração de crianças imigrantes e refugiadas em escolas brasileiras; Grupo Crias: criança, sociedade e cultura da UFPB; e LinCAr Arte África (FAPESP). E-mail: marinan.pastore@gmail.com


Luciana Hartmann


Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil

https://orcid.org/0000-0003-1203-5027


Doutora em Antropologia Social pela UFSC (2004). Professora Titular do Curso de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade de Brasília. Bolsista de Produtividade em Pesquisa CNPq – nível 2. Líder do Grupo de Pesquisa Imagens e(m) Cena. Coordenadora da Rede Internacional de Pesquisa Infâncias Protagonistas: migração, artes e educação. E-mail: lucianahartmann@unb.br


Contribuição na elaboração do texto: as autoras colaboraram igualmente para a elaboração do manuscrito.


Resumen


Partiendo de la comprensión de que los niños son sujetos de derechos, este artículo propone un diálogo entre investigaciones realizadas en Mozambique y Brasil con niños que habitan diferentes territorios, como campos de desplazados y albergues para inmigrantes y refugiados. A través de metodologías que promueven una escucha activa de estos niños, hemos verificado que gran parte de las políticas para personas en movilidad se centran en temas emergenciales, y no proporcionam espacios para la expresión de los niños. Esta reflexiónpretende colaborar en la implementación de políticas públicas que permitan la plena integración de estos niños desplazados en la vida social de sus territorios.


Palabras clave: Niños. Grupos minoritarios. Escucha. Políticas públicas en educación.


Abstract


Based on the understanding that children are subjects of rights, this article proposes a dialogue between research projects conducted in Mozambique and Brazil with children who inhabit different territories of passage, such as camps for displaced people and shelters for immigrants and refugees. Through methodologies that promote active listening to these children, it was found that a large part of the policies for displaced people focus on emergency issues and do not provide spaces for children’s expression. This reflection aims to collaborate in the implementation of public policies that enable the full integration of these displaced children into the social life of their territories.


Keywords: Children. Minority groups. Listening. Public policies in education.




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Referência completa (APA): Pastore, M. D. N., & Hartmann, L. (2023). Escuta de crianças deslocadas como sujeitos de direito em Moçambique e Brasil. Linhas Críticas, 29, e50651. https://doi.org/10.26512/lc29202350651


Referência completa (ABNT): PASTORE, M. D. N.; HARTMANN, L. Escuta de crianças deslocadas como sujeitos de direito em Moçambique e Brasil. Linhas Críticas, 29, e50651, 2023. DOI: https://doi.org/10.26512/lc29202350651


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1Oliveira (2021) vai tratar especificamente dos desafios e deslocamentos de crianças e adolescentes venezuelanos em Roraima.

2Podemos perceber aqui uma clara divisão de gênero entre as crianças que se deslocavam pelo abrigo, porém não aprofundaremos no tema devido às limitações do artigo.

3Em Moçambique, o português utilizado segue a regra gramatical de Portugal. Bicha é o equivalente a fila no Brasil.

4“Casa de banho” é um termo que, no português falado em Moçambique, é referente ao banheiro.

5TPC é uma sigla para “trabalho de casa”, que significa lição de casa.

6Maconde é uma das línguas moçambicanas faladas na região de Cabo Delgado.

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