Editorial / Dossiê Temático
DOI:
https://doi.org/10.26512/vozcen.v3i02.46485Palavras-chave:
Editorial , Dossiê TemáticoResumo
Editorial / Dossiê Temático
por Ernani Maletta, César Lignelli, Jussara Fernandino e Vinícius Albricker
A polifonia é um fenômeno que se manifesta por meio de três condições imprescindíveis: multiplicidade, simultaneidade e equipolência. São múltiplas vozes que, ao mesmo tempo e com igual importância, produzem um sentido - que nenhuma dessas vozes produziria isoladamente. E, para que esse fenômeno seja compreendido da forma como foi proposto como referência para este dossiê, cabe ainda considerar algumas premissas que destacamos a seguir.
Em primeiro lugar, o conceito de voz não se limita aos seus possíveis aspectos sonoros, mas deve ser considerado como qualquer manifestação de quem a produz, dos seus pensamentos, desejos, necessidades, pontos de vista, por meio de qualquer possibilidade expressiva. Além disso, não é simplesmente a materialidade ou concretude física da presença simultânea de vários elementos que determina uma polifonia; o que gera a polifonia são os sentidos que esses elementos produzem e, dessa forma, a polifonia é também um sentido, um ponto de vista, uma percepção. Ressaltamos, também, que os elementos que, simultaneamente, geram sentidos que compõem a polifonia, não necessariamente se apresentam materializados concretamente para quem percebe o fenômeno; podem estar presentes na sua imaginação, de modo que a presença do sentido que um elemento produz pode ocorrer mesmo na ausência de sua forma concreta. Finalmente, ao mesmo tempo em que a multiplicidade é mantida no entrelaçamento das vozes em uma polifonia - na medida em que cada voz preserva sua autonomia -, existe uma unidade no sentido que todas produzem ao se manifestar equipolente e simultaneamente.
Neste dossiê, dedicado à natureza polifônica das Artes da Cena, defendida por Ernani Maletta desde sua tese de doutorado em 2005, e elegendo a imagem, o movimento, a palavra e o som como as instâncias discursivas por meio das quais se manifestam cada um dos diversos criadores que, simultânea e dialogicamente, compõem o espetáculo, buscamos evidenciar a equipolência desses múltiplos pontos de vista na criação de um espetáculo e na formação do artista da cena que, dessa forma, apresentam atuações, encenações e pedagogias polifônicas.
A complexidade da ideia de polifonia já está na subjetividade de quem a percebe, pois cada pessoa, afetada por múltiplos sentidos simultâneos e equipolentes, pode criar uma unidade polifônica absolutamente singular. Talvez seja por isso que, ao falar sobre a polifonia relacionada às nossas experiências artísticas, muitas vezes priorizamos a descrição dos elementos que se apresentam, e deixamos para nosso interlocutor a tarefa de buscar os sentidos por eles produzidos e criar sua própria percepção polifônica. Assim, com o objetivo de oferecer a vocês, leitores, exemplos mais explícitos de manifestação da polifonia nas Artes da Cena, os autores dos artigos que compõem este dossiê, no decorrer do processo de submissão, avaliação e reelaboração dos textos, foram por nós estimulados a apresentar as suas peculiares construções de múltiplos sentidos e a polifonias por estes geradas, que, mesmo não sendo idênticas àquelas que cada leitor perceberia, contribuem para que esse conceito tão complexo seja mais bem compreendido. Obtivemos, assim, um belo e rico dossiê, constituído primeiramente de dois agrupamentos de artigos, reunidos pelo foco da discussão apresentada. Vale comentar que a percepção desses focos é subjetiva, por isso não pode se pretender absoluta, de modo que os temas abordados se atravessam e outros agrupamentos seriam possíveis.
O primeiro agrupamento de artigos reúne a análise de características polifônicas em múltiplos processos e procedimentos criativos, a começar pelo texto Tecendo vozes: a polifonia no Grupo Oficcina Multimédia, por meio do qual Mônica Ribeiro e Cássio Hissa, dialogando com as proposições de atuação e cena polifônica de Ernani Maletta, utilizam-se de pesquisa documental nos cadernos de processo da diretora Ione de Medeiros para evidenciar a polifonia no processo de criação desse reconhecido grupo de Belo Horizonte, oferecendo também ao leitor uma possível correlação entre polifonia e transdisciplinaridade. Já Letícia Coura, em seu artigo A(s) música(s) no Teatro Oficina, trata das singularidades da presença da Música nos processos criativos dessa importante companhia paulista - da qual foi integrante por vinte anos como atriz, cantora, compositora e preparadora vocal -, destacando a potência do coro nos espetáculos produzidos, em especial quanto à prática ritual do grupo e quanto às relações da música com o espaço bem como com o público, também convidado para a atuação.
Por sua vez, com o artigo Os dispositivos em Concert for four pianos de Lolo & Sosaku, Guilherme Mayer e César Lignelli se referem a uma performance por eles analisada, tendo como referência os conceitos de polifonia, discurso e dispositivo, defendendo a ideia de que as escolhas de dispositivos utilizados seriam as definidoras dos discursos criados pela dupla de artistas. Já em Os cuidados de Berna e Ventura: a produção de alteridade na composição coreográfico-musical, João Lucas aborda sua parceria com a coreógrafa portuguesa Clara Andermatt, por meio da qual destaca, em três processos criativos uma “interpenetração expressiva entre música e movimento [...], objetivando a compreensão da crescente produção de alteridade composicional entre os dois criadores”.
Em Musicalidade e teatro: o processo de criação em Outside, um musical noir, Paula Otero analisa o espetáculo teatral Outside, um musical noir, cuja montagem se caracteriza pela polifonia na medida em que houve um entrelaçamento das vozes criativas dos atores-músicos, do diretor, do dramaturgo e do diretor musical, sem hierarquias entre elas. Por seu lado, Maria Lucivânia de Lima Barbosa, em Daqui do Cariri: a atuação polifônica na prática de encenadoras, percebe a prática de encenadoras do Cariri, sul do Ceará, como uma atuação polifônica, com base nas proposições de Maletta, na medida em que, por exercerem mais de uma função na composição cênica, para construir seu discurso artístico se apropriam de múltiplos outros.
O segundo agrupamento de artigos de caracteriza por destacar questões reflexivas e conceituais sobre a natureza polifônica da atuação e da criação no âmbito da cena. Também partindo da concepção de Maletta, Francesca Della Monica revela um pensamento original sobre a abordagem do conceito de polifonia no trabalho com a voz artística. Com uma argumentação bem delineada, em La polifonia della voce solista demonstra sua profundidade de conhecimento sobre a arte vocal para evidenciar a multiplicidade de pontos de vista simultâneos que se manifestam mesmo na voz solista, destacando a estratigrafia de linguagens e discursos que, mesmo no âmbito individual, cada voz expressa simultaneamente.
No artigo Plano de composição polifônico: montagem e agenciamento em processo criativo, Rodrigo Fischer apresenta a ideia de polifonia referenciando-se principalmente em Mikhail Bahktin e, então, ressalta a existência de uma multiplicidade de vozes na criação cênica, em oposição a um discurso dominante centralizador. Em Personas plásticas: as vozes da maquiagem nas Artes Cênicas, Márcio Desideri aborda a maquiagem como instância discursiva da cena e, dessa forma, participante da sua trama polifônica. De forma expandida, trata das relações da maquiagem com as novas tecnologias, abrangendo conceitos como “personas plásticas”, “corpo animado e inanimado”, “redes de criação”, entre outros. Por sua vez, Bianco de Souza Marques, em Música e teatro: aproximações e afastamentos, trata das inter-relações entre a Música e o Teatro. Para isso, refere-se à mousiké e, em contraposição, ao pensamento cartesiano, chegando à ideia de polifonia como aquela que contempla a multiplicidade de vozes própria da cena teatral.
Como principal referência deste dossiê, não poderia faltar a presença de Ernani Maletta, que se manifesta com o artigo Encenação polifônica: o exercício da polifonia como fundamento do processo criativo no Teatro, em uma abordagem da polifonia inédita no que diz respeito às suas publicações sobre o tema e que, de alguma forma, aproxima-se tanto de questões conceituais quanto da prática criativa. Por meio de um metódico processo criativo teatral, apresenta mais uma contribuição para os estudos cênicos, vocais e musicais, seja em uma perspectiva poética como pedagógica.
Integra ainda este dossiê um conjunto de entrevistas, conduzidas pelo pesquisador e professor da UNIRIO Vinícius Albricker, realizadas com três grupos brasileiros que se apropriaram dos princípios e práticas para a formação e criação polifônicas, uma vez que estabeleceram parcerias com Maletta em sua pesquisa sobre a polifonia nas Artes da Cena: Grupo Galpão (Belo Horizonte/MG); Grupo Clowns de Shakespeare (Natal/RN); e Teatro da Pedra (São João del Rei/MG).
Esperamos que este dossiê contribua para estimular em vocês leitores nosso fascínio pela polifonia, em especial pela sua extraordinária potência em ser, ao mesmo tempo, múltipla e única.
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